A dimensão do escândalo de corrupção revelado pela Operação Lava Jato já deixou claro que é preciso buscar meios de aprimorar tanto o combate à corrupção quanto o processo penal. Essa necessidade é tão evidente que a classe política já iniciou por aqui o mesmo processo visto na Itália pós-Operação Mãos Limpas, com a tentativa de aprovar projetos de lei que facilitem a impunidade, sem falar dos ataques à própria Lava Jato e sua força-tarefa – o deputado Wadih Damous, por exemplo, chegou a comparar a época da ditadura com a realidade democrática atual ao associar as delações premiadas a um tipo de “tortura institucionalizada”.
Além de realizar o trabalho de investigação e acusação no âmbito da Lava Jato, membros da força-tarefa têm defendido reformas que, em sua visão, melhorarão o processo penal e dificultarão a impunidade. Tais propostas têm sido lançadas pela via legislativa, como as Dez Medidas Contra a Corrupção, ou em publicações e entrevistas, não sem críticas dos que temem ameaças à democracia e aos direitos dos réus.
As próprias Dez Medidas – desfiguradas pelos deputados e, agora, num limbo legislativo após decisão liminar do ministro do STF Luiz Fux – têm sido descritas como uma tentativa de atacar as liberdades individuais. Para além do endosso de 2 milhões de brasileiros e diversos tribunais e associações de juízes e promotores, é preciso lembrar que a iniciativa do Ministério Público Federal se baseou em experiências de países democráticos e com história de proteção dos direitos fundamentos do cidadão.
O que a Lava Jato tem feito é um bem. Revela o que estava escondido, traz luz sobre o que se fazia nas sombras
Naturalmente, cabe ao Congresso discutir as Dez Medidas e aperfeiçoá-las – a própria Gazeta do Povo já demonstrou reservas quanto a algumas das propostas originais. Mas é inegável que, no seu conjunto, são razoáveis e foram pensadas para lançar luzes sobre um grande problema nacional: um sistema jurídico estapafúrdio, anômalo, incomum, em que uma ação penal contra pessoas abastadas se arrasta por 15 anos ou mais, sendo fulminada pela prescrição. A função inibidora da lei acaba aniquilada, fazendo a corrupção compensar. Não é necessário ir longe. A maior parte do esquema de desvios da Assembleia Legislativa do Paraná, denunciado pela Gazeta do Povo e pela RPCTV, ainda percorre os labirintos dos tribunais.
É nesse sentido que se deve entender a defesa de um “garantismo integral” em oposição ao “garantismo hiperbólico monocular”, feita por Deltan Dallagnol em recente entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo. O procurador defende, por exemplo, um debate sobre o papel das provas e o nível de convicção necessário para que um julgamento termine em absolvição ou condenação: a dúvida favorece o réu, e isso não se questiona; mas a partir de que ponto se pode dizer que estão excluídas as dúvidas a respeito da culpabilidade de um acusado? Essa discussão, que envolve conceitos como o de “certeza moral” e “dúvida razoável”, é instigante, meritória e parte da experiência de países de tradição democrática mais sólida que a brasileira; não se vê por que ela não deveria ocorrer por aqui.
O grau sem precedentes de transparência dos processos da Lava Jato permite constatar de modo concreto – e não por mera conjectura – que as denúncias têm base em amplas provas. As acusações e sentenças jamais se lastreiam apenas na versão dos colaboradores e vêm sendo endossadas, em sua grande maioria, pelas cortes superiores. Se perigo há de abuso ou arbitrariedade, dificilmente ocorreria nesse big brother que é a Lava Jato.
Ainda que os órgãos de persecução fossem tiranos como se tem tentado retratá-los, sua ação é direcionada a um Judiciário independente, garantidor dos direitos civilizatórios. A Justiça não se resume a um juiz de Curitiba. Recursos têm sido aviados à exaustão pelas defesas em três instâncias, que têm confirmado mais de 95% dos atos e decisões. Assim, independentemente de como membros da força-tarefa considerem que deveria ser o processo penal, não há dúvidas de que eles vêm agindo em estrito respeito à lei atual brasileira.
O que a Lava Jato tem feito é um bem. Revela o que estava escondido, traz luz sobre o que se fazia nas sombras. Há quase três anos, tínhamos não apenas uma Petrobras impregnada de corrupção, mas um país sem esperança de mudança. Imperava a impunidade e o completo desrespeito à sociedade. Uma simples poda da árvore da corrupção, para evitar maior desgaste, pode fazê-la produzir mais frutos no futuro. A sociedade quer estabilidade e o país precisa dela, mas ela não virá enquanto o trabalho não for feito por inteiro. As propostas levantadas pelos procuradores, seja pelas Dez Medidas, seja em publicações ou entrevistas, merecem discussão na academia e no parlamento. Descartá-las de antemão sob a alegação de autoritarismo é, ainda que inadvertidamente, fazer o jogo dos que apostam na impunidade.