Cerca de 1.500 famílias autodenominadas de sem-teto ou mais de 6 mil pessoas ocupam desde as vésperas do feriado municipal de 8 de setembro um terreno de propriedade particular de 170 mil metros quadrados situada no bairro Fazendinha, em Curitiba. Barracos de lona, pequenas casas improvisadas de madeira, alguns "estabelecimentos" comerciais e até mesmo um escritório de advocacia ocupam lotes que elas próprias demarcaram, enquanto abriam ruas e se alimentavam de energia por meio de "gatos" instalados na rede elétrica vizinha. Em poucos dias foi destruída grande parte de um bosque de vegetação nativa sob proteção ambiental.
Estes são os fatos, conforme constam dos registros da imprensa desses últimos dias. Aparentemente simples, no entanto, eles suscitam o exame de algumas graves questões de ordem social, política, urbana e ambiental, inevitavelmente presentes nos episódios que envolvem a ocupação irregular de áreas públicas e privadas numa cidade de modo especial em Curitiba, uma metrópole que cada vez mais se vê às voltas com os efeitos da dinâmica do explosivo crescimento demográfico da região metropolitana.
Outrora modelo de desenvolvimento controlado, Curitiba foi uma das capitais brasileiras que, a partir dos anos 70 do século passado, com a modernização da agricultura e a conseqüente liberação de grandes contingentes da mão-de-obra rural, mais sofreram com o processo de urbanização do país. No Paraná, com uma característica mais peculiar em relação a outros estados, pois aquela década foi aqui marcada por cataclismos climáticos que dizimaram a cafeicultura lavoura até então responsável pelo dinamismo econômico do interior e pela retenção de sua população.
Deu-se, a partir de então, um êxodo extraordinário para os grandes centros. Curitiba e região foram diretamente afetadas, experimentando um inchaço populacional a taxas superiores a 6% ao ano. Levas de migrantes deserdadas do trabalho no campo vieram em busca de melhor sorte, sem, contudo, estarem profissionalmente qualificadas para competir pelas escassas oportunidades de empregos urbanos. Data desta época o início efetivo da favelização da capital e dos municípios vizinhos à custa, em grande parte, da ocupação irregular de áreas públicas e privadas ociosas.
Como fator de agravamento da situação, lembremo-nos que o país viveu, nos anos que se seguiram, o que se convencionou chamar de "década perdida", marcada pela forte instabilidade da moeda, pelo sofrível crescimento econômico e pelas altas taxas de desemprego. Incapazes de enfrentar a situação, de criar empregos e de manter a qualidade mínima dos serviços sociais, os governos federal, estaduais e municipais simplesmente assistiram ao processo de degradação geral.
Pela falta de resposta oficial às suas necessidades, dividiram-se os deserdados da agricultura em duas frentes. De um lado, organizaram-se os sem-terra em busca de retorno às suas origens; de outro, os sem-teto com a vida precarizada pela falta de oportunidades e de condições dignas de moradia. São estes os personagens que fizeram Curitiba e a região metropolitana tornarem-se um gigante demográfico que mal cabe nos seus limites territoriais propícios à urbanização.
Visto sob este ângulo, o fenômeno histórico que já dura mais de 30 anos é mais do que compreensível. Resultado de complexos problemas conjunturais ou permanentes de ordem econômica, social e política que afetaram o estado e o país no período, pode-se perfeitamente compreender o drama ora retratado no microcosmo da invasão da área no Fazendinha.
São lastimáveis e condenáveis, no entanto, as ações de grupos mais interessados em transformar as vítimas desse drama em massa de manobra para fins político-eleitorais de fundo ideológico, assim como é igualmente condenável a ausência de políticas públicas mais eficazes para superar o déficit habitacional e, ao mesmo tempo, manter o controle do desenvolvimento urbano e da qualidade ambiental.
Maciços investimentos precisam ser feitos para multiplicar o número de moradias ao mesmo tempo em que se lhes garantem condições de saneamento básico, respeito ao meio ambiente, transporte coletivo, centros de atendimento social. Se Curitiba quiser manter o mínimo e modelar ordenamento urbano que conquistou não poderá escapar de enfrentar esse desafio. Caso contrário, terá destino igual ao de outras grandes metrópoles brasileiras a caótica São Paulo é um exemplo.
É claro que não basta construir mais casas nem, talvez, essa seja a maior necessidade. Os grandes problemas estão situados em outras áreas que, se resolvidos, permitirão naturalmente a solução da moradia por meios próprios. Incluem-se nessa visão a educação, a saúde e a oferta de empregos, não só em Curitiba e seu entorno, mas sobretudo no interior, de modo a conter a migração. São políticas de longo prazo e de efeitos lentos que não resolvem, portanto, o problema imediato e urgente do déficit habitacional e das invasões. Mas são igualmente inadiáveis.