No episódio de violência política mais grave ocorrido nos Estados Unidos desde a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, o ex-presidente e candidato republicano à presidência dos EUA Donald Trump sobreviveu por muito pouco a um atentado a tiros durante um comício na Pensilvânia, no último sábado. Trump levou um tiro de raspão na orelha; um bombeiro que estava na plateia morreu atingido por outro disparo, enquanto protegia sua família, e outras duas pessoas foram feridas.
O atirador, Thomas Matthew Crooks, foi morto por atiradores de elite segundos após efetuar os disparos, e seus pertences estão com órgãos de investigação. No entanto, mesmo sem que se saiba quais os motivos específicos que levaram Crooks a tentar matar Trump, e mesmo que tenham ocorrido falhas por parte do Serviço Secreto norte-americano, encarregado de proteger o ex-presidente e prevenir esse tipo de situação, já é possível identificarmos com toda a certeza uma causa remota do ataque sofrido pelo republicano: a degeneração do debate político, com a normalização da retórica que demoniza ou desumaniza o adversário – um fenômeno que não é nem de longe exclusividade norte-americana, podendo ser observado em muitas democracias ocidentais.
Uma causa remota do ataque sofrido por Trump é a degeneração do debate político, com a normalização da retórica que demoniza ou desumaniza o adversário
Quando adversários políticos já não são tratados como o que são – pessoas que têm discordâncias legítimas e merecem o devido respeito, ainda que se considere que estejam profundamente equivocadas – para ganharem designações como “lixo”, “vermes” ou “animais selvagens” (todos esses exemplos reais, vindos dos dois lados do espectro político), está dado o recado: a eles não é preciso dispensar o mesmo tratamento dado a um ser humano. Da mesma forma, a banalização de termos como “fascista”, “nazista” ou “ameaça à democracia” para designar políticos ou seus apoiadores segue o roteiro idêntico. Para quem crê que a única forma de lidar com um nazista não é na conversa, mas no braço (ou na bala), basta juntar os pontos que a violência política acaba legitimada.
Na contramão de algumas reações vergonhosas – como o da ex-assessora de um deputado democrata que pediu ao atirador para “não errar da próxima vez”, ou de setores da esquerda brasileira que negam a realidade do atentado – os dois homens que disputarão a presidência dos Estados Unidos em novembro parecem ter tomado consciência das consequências da retórica demonizadora. Em pronunciamento televisivo feito na noite de domingo, o presidente Joe Biden afirmou que é preciso “baixar a temperatura” do debate político e “dar um passo para trás”. “Podemos discordar, mas não somos inimigos; somos vizinhos, amigos, colegas de trabalho”, afirmou com razão. Ironicamente, o pedido significa uma mudança radical na própria campanha democrata, já que o que Biden mais vinha fazendo era descrever Trump como uma “ameaça à democracia”.
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Trump – que está longe de ser um exemplo de moderação no discurso – foi na mesma toada em entrevista ao New York Post, a primeira após o atentado. O republicano afirmou ter “jogado fora” o discurso que havia preparado para a convenção do seu partido, iniciada nesta segunda-feira. “Eu faria um discurso bem duro, muito bom, sobre essa administração corrupta e horrorosa”, afirmou ao repórter do Post, acrescentando que a nova versão seria sobre “unir o país” e que, de agora em diante, a campanha se tornaria mais civilizada.
“Discordar é inevitável na democracia americana, e faz parte da natureza humana, mas a política é a arena do debate pacífico”, afirmou Biden em seu pronunciamento – uma verdade que vale não somente para os Estados Unidos, mas para o mundo todo. Não se trata de abrir mão das próprias convicções em nome de um relativismo, nem de deixar de debater temas políticos, mas de compreender que é possível debater ideias sem desrespeitar (muito menos desumanizar) pessoas, que há todo um arco de posições legítimas (concordemos ou não com elas) sobre vários temas, e que considerar todos os que discordam de nós como burros ou mal-intencionados está muito longe da verdade. Se a trégua provocada pelo atentado contra Trump se mostrar permanente, haverá esperança de recuperar uma autêntica cultura democrática dentro e fora dos Estados Unidos.