Diz o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura que o juiz não pode “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”. Mas, como ultimamente a lei não tem sido obstáculo para impedir ministros do Supremo Tribunal Federal de fazer o que bem entenderem, o presidente da corte, Luís Roberto Barroso, defendeu a legalização do aborto em evento na segunda-feira. “Eu pessoalmente considero um direito fundamental da mulher a sua liberdade sexual e reprodutiva. O Estado não tem o direito de mandar a polícia, o promotor ou o juiz obrigarem uma mulher a ficar grávida do filho que ela não quer ter”, afirmou, na prática antecipando seu voto na ADPF 442, cujo julgamento foi suspenso a pedido do próprio Barroso, após o voto inicial da (agora ex-)ministra Rosa Weber em plenário virtual.
Graças ao pedido de destaque de Barroso, o julgamento agora ocorrerá no plenário físico, e é ele, na qualidade de presidente da corte, quem definirá o momento em que a ADPF 442 entrará na pauta. O ministro voltou a afirmar que não pretende colocar o tema em discussão em um futuro próximo, alegando “que o debate público não está fortalecido” – uma afirmação um tanto curiosa, inclusive por causa das convicções do ministro. O “debate público”, afinal, parece amplamente dominado pela posição favorável à legalização: a grande maioria da imprensa e dos formadores de opinião, com honrosas exceções, concorda com o ministro. O “problema”, aqui, é que a maioria dos brasileiros, em contraste com a “opinião publicada”, insiste em defender que um ser humano indefeso e inocente tem direito à vida.
Barroso recorre ao famoso “espantalho” para transformar as críticas ao ativismo em mera questão de gosto, quando o que está em jogo é o próprio Estado de Direito e a tripartição de poderes
Mas a opinião do povo não importa para um “iluminista” como Barroso, que se acredita imbuído da missão de “empurrar a história na direção certa” (leia-se a direção que ele considera ser a certa), independentemente do que o povo pense a respeito de determinado assunto. É por isso que, como afirmamos depois da suspensão do julgamento da ADPF 442, parece-nos muito mais provável que as verdadeiras razões de Barroso para manter o assunto em banho-maria nada tenham a ver com a “maturação” do debate público, mas com uma constatação bem mais pragmática: faltam-lhe os votos para sua posição ser a vencedora, e a ação não estará na pauta até que o presidente do STF consiga os apoios necessários entre seus colegas.
Na mesma ocasião, Barroso debochou dos que criticam a corte por frequentemente tomar para si papéis que não são os seus, por meio do ativismo judicial – exatamente o que está acontecendo no caso da ADPF 442. “Com frequência as pessoas chamam de ativistas as decisões de que elas não gostam, mas geralmente o que elas não gostam mesmo é da Constituição ou eventualmente de democracia”, afirmou, recorrendo ao famoso “espantalho” para transformar as críticas ao ativismo em mera questão de gosto, quando o que está em jogo é o próprio Estado de Direito e a tripartição de poderes.
De fato, é mais comum que as críticas venham de quem discorda das decisões, até porque um parlamentar derrotado no Legislativo jamais reclamará de ter sua função usurpada pelo STF se os ministros decidirem como ele quer, e basta lembrar que muitas decisões de cunho ativista são tomadas a pedido de partidos e de políticos que não conseguem fazer valer suas ideias no Congresso por falta de representatividade. Mas o verdadeiro problema é a interferência do Judiciário nas funções do Legislativo e, em outros casos, também do Executivo. Juízes não escrevem leis, nem determinam políticas públicas. Podem, sim, apontar omissões do Legislativo quando elas efetivamente existem – um caso recente foi o da redistribuição de cadeiras por estado na Câmara dos Deputados –; mas não podem inventar “omissões” em casos nos quais o Legislativo já se pronunciou (e aqui é preciso lembrar que mesmo a escolha de não pautar determinado projeto de lei também constitui uma forma de se pronunciar), apenas porque os congressistas decidiram algo que não agradou aos ministros.
No fim, quem realmente não gosta da Constituição e da democracia é quem defende o ativismo judicial. Não gosta da Constituição quem se sente tolhido pelo papel institucional que a Carta Magna lhe concede ao delimitar seu escopo de atuação e impor freios e contrapesos, e por isso usa a caneta de magistrado para agir como legislador ao arrepio do que prevê a Lei Maior. E não gosta de democracia quem se acha no direito de reverter uma posição legítima adotada pela maioria da população e de seus representantes eleitos, só por discordar dela.