Na mesma semana em que o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento sobre a possível criminalização da homofobia, que continuará nos próximos dias, a Associação dos Magistrados Brasileiros publicou uma pesquisa com dados que mostram quão grande é a tendência ao ativismo judicial por parte da magistratura nacional. Duas questões, entre as quase 200 que compuseram a pesquisa “Quem somos – a magistratura que queremos”, mostraram que parte significativa da classe enxerga em si mesma uma função que o clássico esquema da tripartição de poderes jamais pensou em lhe conceder.
A pesquisa entrevistou mais de 4 mil juízes de todas as instâncias (inclusive de tribunais superiores), das justiças Estadual, Federal, Militar e do Trabalho. Diante da afirmação “No caso limite de temas sensíveis para a sociedade, sobre os quais não se constitui uma maioria parlamentar, o Poder Judiciário pode exercer um papel criativo na produção de normas, a fim de atender aos anseios da coletividade”, eles foram chamados a dizer se discordavam ou concordavam, e em que grau. Quase metade dos juízes de primeiro grau (46,6%) e mais da metade dos magistrados de segunda instância (57,8%) disseram concordar pouco ou muito com esse “papel criativo na produção de normas”. Entre os ministros de tribunais superiores, a proporção é ainda maior: 66,6%, ou dois terços.
Cada vez mais magistrados consideram legítimo que eles possam agir também como legisladores
A questão seguinte acrescentou uma nuance: em vez de criar normas, criar interpretações sobre leis já existentes. A frase apresentada aos entrevistados era “No caso limite de temas sensíveis para a sociedade, sobre os quais não se constitui uma maioria parlamentar, os magistrados podem interpretar criativamente as leis, desde que levem em conta as consequências de suas decisões, de acordo com o ideal de bem comum”. O apoio à “interpretação criativa das leis” foi ainda maior que nos casos em que não havia legislação aprovada: 67% na primeira instância, 73,5% na segunda instância e 83,3% entre ministros de tribunais superiores. Coincidência ou não, uma das ações em julgamento nesta semana pede exatamente uma “interpretação criativa” da Lei 7.716/89, que trata do racismo, para ali incluir categorias que o legislador não contemplou na ocasião.
Esta visão do Judiciário como “criador de normas” e “intérprete criativo de leis” – “criatividade” essa que normalmente consiste em ler a legislação de forma bastante diferente, quando não contrária, àquela que foi desenhada por seus criadores – é um contraste com a função de garantir o cumprimento das normas legais, cuja elaboração é tarefa de outro poder, o Legislativo. Os dados da pesquisa demonstram que cada vez mais magistrados consideram legítimo que eles possam agir também como legisladores, seja quando se trata de tema ainda não contemplado por lei, ou até mesmo quando o conteúdo da lei desagrada o magistrado – caso de um dos maiores expoentes do ativismo judicial no Brasil, o ministro do STF Luís Roberto Barroso, que, em sua campanha para legalizar o aborto no Brasil, usa até mesmo o julgamento de um habeas corpus para decidir que os artigos do Código Penal que criminalizam a prática são inconstitucionais.
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Não ignoramos as dificuldades que há, em certos casos, na delimitação dos limites entre as competências dos poderes; e não descartamos, de forma alguma, as boas intenções que movem muitos magistrados que, com suas decisões, acreditam estar corrigindo injustiças que, em sua opinião, não seriam resolvidas de outra forma. Mas o ativismo judicial tanto existe e é um problema que o próprio presidente do STF, ministro Dias Toffoli, manifestou a intenção de reduzir o que enxerga como um “protagonismo” do Judiciário. Quando um juiz, desembargador ou ministro de tribunal superior força suas próprias convicções sobre a sociedade a despeito da existência dos outros poderes, a despeito que dizem as leis elaboradas por representantes do povo, a despeito do que a sociedade deseja, ele está agindo menos como um juiz e mais como um déspota esclarecido. E, se este tipo de postura encontra trânsito livre entre ministros de tribunais superiores, não chega a surpreender que as demais instâncias da magistratura vejam uma legitimação do ativismo judicial e passem a agir da mesma forma, em uma postura prejudicial ao próprio Judiciário e ao país como um todo.