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Editorial

Ativismo judicial não é mito, é realidade assustadora

Luís Roberto Barroso, presidente do STF
Luís Roberto Barroso, presidente do STF, afirmou que ativismo judicial era um "mito". (Foto: Antonio Augusto/STF)

Agosto já passou, mas Luís Roberto Barroso continua empenhado em ampliar o panteão das entidades mitológicas do folclore brasileiro. À lista que os brasileiros aprendem desde crianças e que inclui da Mula-Sem-Cabeça ao Curupira, o presidente do STF quer acrescentar o ativismo judicial como algo de que muito se fala, mas que no fim das contas não existe. Ao menos foi o que Barroso afirmou no último dia 12, em Roma, participando de um desses muitos eventos bancados por empresas com interesses diretos em ações no Supremo. “Gostaria de desfazer esse mito”, afirmou, sobre a ideia de que existe “um grande nível de ativismo judicial” no Brasil.

O que se convencionou chamar de “ativismo judicial” não é algo muito complicado de definir: trata-se da intromissão do Poder Judiciário na seara de outros poderes, por exemplo agindo como legislador (quando usurpa o papel do Legislativo) ou definidor de políticas públicas (tomando o papel do Executivo). E são fartos os casos em que o STF tomou para si tarefas do Congresso ou do governo federal, em campos os mais diversos, que vão de temas comportamentais a econômicos, passando por política prisional e sanitária, e até mesmo a legislação penal. Em todos esses episódios, de nada adianta Barroso se defender alegando que a Constituição Federal trata de muitos assuntos que, em outros países, seriam objeto de discussão política, insinuando que o fato de o STF ser a corte constitucional o habilitaria a dar a última palavra sobre uma miríade de temas.

São fartos os casos em que o STF tomou para si tarefas do Congresso ou do governo federal, em campos os mais diversos

Um caso especialmente grotesco de ativismo judicial se deu no contexto do bloqueio do X no Brasil, decretado por Alexandre de Moraes no fim de agosto. O inciso II do artigo 5.º da Constituição diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” – ou, como diz o adágio latino, nulla poena sine lege, “não há punição sem lei”. Desde a infração de trânsito mais leve até o crime hediondo, inafiançável e imprescritível, qualquer ilícito precisa ser definido em lei devidamente aprovada pelo Legislativo. Mas, quando Moraes resolveu aplicar multa de R$ 50 mil a quem fosse flagrado usando VPNs para acessar o X durante o bloqueio, este princípio foi jogado no lixo. Se não há lei proibindo ninguém de usar VPNs, não existe “obrigação de não fazer”. Ao incluir tal vedação, e sua respectiva punição, na decisão de bloqueio, o ministro tomou o lugar dos quase 600 congressistas e redigiu lei penal sem autorização nenhuma para fazê-lo.

Todo o âmbito dos inquéritos abusivos presididos por Moraes, aliás, tem sido terreno fértil para o ativismo que gosta de redigir legislação penal e processual. Veja-se, por exemplo, as ordens de exclusão sumária de perfis em mídias sociais, que não consta como medida cautelar em nenhuma peça de legislação brasileira – o máximo que o Marco Civil da Internet prevê, por exemplo, é a remoção de conteúdos considerados criminosos. Em outra ocasião, Moraes determinou multa e bloqueio de bens para forçar o então deputado Daniel Silveira a colocar uma tornozeleira eletrônica – a medida, no entanto, não está prevista no Código de Processo Penal; só se usa na esfera civil, e em processos que envolvem disputas entre particulares. Todos esses casos repetem um mesmo padrão: se um ministro do STF gostaria de fazer algo que não está previsto na lei, inventa-se na hora uma nova regra e impõe-se sua aplicação.

Outra situação recente, desta vez de interferência nas atribuições do Executivo, se deu durante a crise das queimadas na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado. Flávio Dino, comportando-se mais como o ministro da Justiça que havia sido, e não como o ministro do STF que agora é, ordenou a mobilização das Forças Armadas, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Força Nacional para combater o fogo, e praticamente forçou o governo a gastar dinheiro que não tem por meio da abertura de crédito extraordinário. Por mais que a situação provocada pelas queimadas exigisse resposta imediata, e por mais que o governo tivesse falhado grosseiramente até o momento, não é ao Judiciário que cabe o papel de formulador de políticas públicas.

Da mesma forma, também não era função do STF tomar o lugar do Executivo durante a pandemia de Covid-19 e impor critérios totalmente ilógicos (e contrários aos sugeridos pela Anvisa) para a entrada de estrangeiros no Brasil, por decisão do atual presidente da corte. Ou obrigar estados e municípios a adotar certas políticas de caráter facultativo em relação à população de rua. E muito menos violar prerrogativas presidenciais de nomeação para cargos sem que houvesse razão legalmente prevista para tal (como um desvio de finalidade que protegesse o nomeado de uma investigação, por exemplo), como o STF fez no governo de Michel Temer, impedindo a posse de Cristiane Brasil no Ministério do Trabalho.

A estes exemplos somam-se inúmeros outros que seguem padrões similares, anulando ou alterando o que fora aprovado pelos representantes do povo, ou ainda inventando regras que não constam da Constituição nem da legislação infraconstitucional. No campo dos costumes, é o caso da recente descriminalização do porte de maconha (com direito até a determinar a quantidade que separaria um traficante de um usuário), da equiparação da homofobia ao racismo, ou da tentativa de legalizar o aborto no primeiro trimestre de gestação, por meio da ADPF 442, ainda pendente de julgamento e que conta o apoio entusiasmado de Barroso. No campo da economia, o STF já inventou uma regra que não constava na Constituição, ao exigir aval do Congresso para a venda de empresas estatais; anulou em decisão liminar (posteriormente derrubada pero no mucho) um trecho da Lei das Estatais que barrava indicações políticas para diretorias e conselhos de administração dessas empresas; e impediu uma redução de alíquotas de IPI.

Em outras palavras, ativismo judicial, sim, e em grande nível. Barroso pode não gostar do termo, porque ele é bastante preciso ao deixar implícita uma extrapolação dos poderes do STF, mas não esconde que aprova essa forma de agir. Afinal, ela reflete o seu sonho de um Judiciário “iluminista” e “contramajoritário”, que “empurra a história na direção certa” – que, no caso, é a direção que ele, Barroso, acha certa. Se o povo, que exerce o poder por meio de seus representantes eleitos, decide algo que não está de acordo com as convicções dos ministros ou demonstra uma disposição “perigosamente conservadora”, como afirmou Cármen Lúcia em 2018, caberia ao STF “consertar” o “erro”, alegando supostas inconstitucionalidades ou omissões.

Barroso pode não gostar do termo “ativismo judicial”, porque ele é bastante preciso ao deixar implícita uma extrapolação dos poderes do STF, mas não esconde que aprova essa forma de agir

“Omissão”, aliás, tem sido uma muleta bastante conveniente para o ativismo judicial que resolve fazer ou alterar leis quando o Congresso não se pronuncia sobre determinado assunto, ou quando se pronuncia, mas não da maneira desejada pelos ministros, ou pelos partidos derrotados no debate parlamentar e setores da sociedade civil que têm tapete vermelho no STF. Barroso, sendo responsável pela pauta do tribunal, deveria saber que não votar um projeto de lei ou parar sua tramitação não é omissão, mas ação derivada de uma escolha, pois o presidente do Supremo faz o mesmo quando não coloca certo julgamento na ordem do dia. Nem por isso passa pela cabeça dos parlamentares ordenar que o STF julgue tais ou tais ações, ou decidirem eles mesmos um veredito, na ausência de um julgamento – por mais que a demora da Justiça prejudique (às vezes de forma irreparável) os direitos de muitos brasileiros. No entanto, Barroso e seus colegas se acham na posição de fazer exatamente isso com um Congresso que eles consideram “omisso” quando conveniente.

A hipertrofia do Poder Judiciário – especialmente do STF –, que assume as funções dos outros poderes por mais que negue fazê-lo, desequilibra a balança institucional, que depende da independência e da harmonia entre poderes descrita na Constituição. A existência de um hiperpoder não é “mito”; ela é até mesmo assumida em frases como a do ex-presidente do STF Dias Toffoli sobre os ministros como “editores de um país inteiro” e sobre a corte como “poder moderador”, ou quando Barroso assume o “poder político” de que o tribunal se revestiu nos últimos anos. Em um cenário ideal, os ministros tomariam consciência dessa anomalia e partiriam para a autocontenção; no entanto, a negação do ativismo e a tranquilidade com que Toffoli e Barroso assumem seu papel de liderança no processo político indicam que o freio não virá de dentro da corte.

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