Se ainda faltava algo para despertar a indignação da comunidade internacional e unir as potências mundiais em prol de ações que acelerem o fim do ataque russo à Ucrânia, as imagens aterradoras de Bucha, cidade nos arredores de Kiev recentemente abandonada pelas tropas de Vladimir Putin, podem ser a gota d’água. Centenas de corpos de civis ucranianos, especialmente homens adultos – mas também crianças, mulheres e idosos –, foram deixados pelas ruas, muitos deles com as mãos amarradas e marcas de tiros na cabeça, indicando execução sumária.
Governos ocidentais como os de Estados Unidos, Reino Unido e França (que se manifestou por meio do próprio presidente Emmanuel Macron), entidades supranacionais como a União Europeia e a ONU, e organizações internacionais de direitos humanos como a Human Rights Watch se uniram na exigência de investigações independentes e responsabilização firme daqueles que estiverem por trás dos massacres, inclusive no Tribunal Penal Internacional, já que as cenas indicam o cometimento de crimes de guerra.
A comunidade internacional tem a obrigação moral de usar todos os meios não violentos a seu dispor para forçar a Rússia a recuar
O governo russo, evidentemente, nega qualquer participação no massacre e atribui as imagens a uma tentativa deliberada dos ucranianos de semear confusão e colocar a opinião pública mundial contra Putin – como se a invasão em si já não fosse motivo suficiente para transformar a Rússia e Putin em párias internacionais. No entanto, como lembra o colunista Diogo Schelp na Gazeta do Povo, muitas das imagens de Bucha vieram de correspondentes independentes, sem vínculos com o governo ucraniano, ainda que possa haver algum tipo de interferência do governo da Ucrânia em relação aos locais que jornalistas estrangeiros podem ou não visitar. “É preciso levar muito a sério as imagens e os relatos dos massacres em Bucha e em outras cidades. Não se trata de guerra de informação. São fatos bem documentados, por profissionais independentes. Não é possível fabricar cenas de massacres como essas de maneira tão perfeita”, afirma Schelp.
Além disso, as atrocidades de Bucha não passam de uma forma de colocar em prática todo o discurso de Putin a respeito da própria existência da Ucrânia, que, segundo o autocrata russo, seria um Estado artificial, com uma identidade nacional artificial e um idioma artificial, dominado por “nazistas”. Para implantar a dita “unidade histórica” entre russos e ucranianos, defendida por Putin em um longo artigo publicado em julho de 2021, valeria tudo, especialmente a aniquilação daqueles que insistem em uma Ucrânia independente, livre para defender sua cultura e definir seus próprios destinos, sem subserviência a Moscou. Há todo um arcabouço ideológico para o genocídio e a limpeza étnica.
Em 1999, o massacre promovido pelo governo iugoslavo contra os albaneses no Kosovo foi o estopim para uma campanha de bombardeio aéreo realizada sem a autorização das Nações Unidas. No entanto, é altamente improvável, para não dizer impossível, que algo semelhante ocorra agora – afinal, a Rússia não é a Iugoslávia; um ataque direto da Otan e a resposta de Putin levariam o mundo à Terceira Guerra Mundial. No entanto, a comunidade internacional tem a obrigação moral de usar todos os meios não violentos a seu dispor para forçar a Rússia a recuar. Como já lembramos neste espaço, as potências europeias levaram tempo demais para buscar novos fornecedores de hidrocarbonetos, fazendo-o apenas quando a invasão da Ucrânia já havia ocorrido e, na prática, ajudando a financiar o ataque russo. E, se a hipótese de uma paz construída à custa da entrega de áreas da Ucrânia já era absurda, depois de Bucha essa ideia se torna ainda mais desonrosa, para evocar as palavras de Winston Churchill sobre o então premiê britânico Neville Chamberlain após Reino Unido e França terem permitido que a Alemanha nazista anexasse partes da Tchecoslováquia. A “paz para o nosso tempo” alardeada por Chamberlain após voltar da Conferência de Munique, sabe-se, durou menos de um ano.
- Diogo Schelp: O massacre de Bucha e o antídoto contra a guerra de informação
- Um mês de guerra: o que ainda não foi feito (editorial de 25 de março de 2022)
- Putin, conservadores e falsos profetas (editorial de 7 de março de 2022)
- Da tragédia ao improvável: desfechos para a guerra (editorial de 4 de março de 2022)
Também dentro da Rússia a revelação dos massacres em Bucha e outras cidades precisa ser o estopim para que a oposição interna à invasão ganhe força, seja acordando aqueles russos anestesiados pela máquina de propaganda estatal, seja renovando o ímpeto de quem já não sofreu a lavagem cerebral e teve a coragem de ir às ruas contra o ataque. Bem sabemos que Putin tem às mãos um notável aparato repressor que já calou a primeira onda de protestos, e que apenas o povo nas ruas não será suficiente para encerrar a invasão – será preciso que também o poder político e militar russo perceba que Putin se tornou um estorvo.
A bravura dos ucranianos na defesa de seu país dá esperança ao mundo, e este é o momento de intensificar a resistência. A ajuda militar e financeira aos ucranianos precisa ser mantida e as potências ocidentais precisam aprimorar as sanções, atingindo a Rússia onde ela for mais vulnerável economicamente. Só assim haverá chance de vitória, para que os responsáveis por Bucha e por todas as demais violações de direitos humanos e acordos internacionais cometidas na Ucrânia possam, um dia, chegar ao banco dos réus – em Kiev, em Moscou ou em Haia.
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