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Editorial

Barroso, o aborto e a “sociedade obscurantista”

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, afirmou que não deve pautar tão cedo a ADPF que pede a legalização do aborto. (Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF)

O ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, voltou a afirmar, nesta quarta-feira, que não pretende colocar em votação a ADPF 442, que pretende legalizar o aborto no Brasil, em um futuro próximo. A ação tem um voto favorável, da ex-ministra Rosa Weber, que era relatora e presidente do STF e, às vésperas da aposentadoria, colocou a ADPF na pauta do plenário virtual apenas para poder depositar seu voto – logo em seguida, o julgamento foi suspenso a pedido de Barroso. De acordo com o ministro, é preciso que a sociedade esteja “esclarecida” sobre o tema – por “esclarecida”, leia-se “endossando a opinião do ministro”, claro.

Em outras ocasiões, já explicamos que a justificativa não convence. Barroso tem a firme convicção de que cabe ao Judiciário “empurrar a história na direção certa”, ou seja, na direção que ele considera correta, sendo irrelevante a opinião da maioria da população. Tanto é assim que o presidente do STF anunciou, no fim do ano passado, a intenção de encerrar neste primeiro semestre de 2024 outro julgamento crucial sobre uma pauta que também conta com a simpatia do ministro, mas que tem considerável resistência da população: a descriminalização do porte de maconha. O mais provável, portanto, é que Barroso, o maior entusiasta da legalização do aborto no STF, já teria reiniciado o julgamento se estivesse convicto da vitória; se não o fez, possivelmente é por acreditar que faltam os votos necessários para que a ADPF 442 prospere, e ela não será pautada enquanto Barroso não tiver certeza absoluta de que sua opinião prevalecerá.

Nada pode ser mais esclarecido que uma sociedade consciente da necessidade de defender todos os seres humanos, da concepção à morte natural, concedendo proteção especial aos mais vulneráveis, incluindo o nascituro, mas também a mãe em situação de desespero

Estratégias à parte, é sempre útil desmontar o discurso de Barroso sobre este assunto, a começar pela pressuposição, bastante paternalista, de que a sociedade, no fundo, não sabe o que está sendo discutido. Ocorre que o presidente do STF se acostumou a tratar a gestante como o único ser humano envolvido na questão, esquecendo-se completamente da principal vítima do aborto: o nascituro. Daí a lógica da legislação que trata o aborto como crime: ela não reflete nenhuma insensibilidade da sociedade em relação às mulheres – insensíveis são os abortistas que exploram o desespero das mães, ao vender-lhes o aborto como a única opção aceitável –, tanto que o legislador, ao decidir não punir os abortos realizados em caso de gravidez resultante de estupro ou risco de vida para a mãe, escolheu uma solução humanitária para casos dramáticos. Se o aborto é crime, não é por desprezo ou ódio às mulheres, mas porque se reconhece a enorme barbaridade que existe na eliminação do ser humano mais indefeso e inocente que há, e se busca a proteção da vida por nascer.

Também fica patente a tentativa de transformar o aborto em questão religiosa, o que abriria um flanco para a legalização sob a alegação de que as igrejas estariam apenas tentando impor as regras morais de sua fé aos que não compartilham dela. “Tudo que mistura o sentimento religioso torna difícil porque é um espaço de dogmas, e não um espaço do debate racional”, disse o ministro, deixando implícita uma associação bastante preconceituosa entre dogmas e irracionalidade. O aborto, no entanto, não é um assunto religioso, mas científico, filosófico e ético, que envolve questões sobre o momento do início da vida humana, o conceito de ser humano e pessoa humana, e o choque entre princípios bioéticos como a autonomia e a não maleficência; mesmo quando são líderes religiosos a defender a vida no debate público, eles o fazem principalmente por esses prismas, já que se trata de argumentos que não dependem da filiação religiosa para serem entendidos e aceitos por qualquer um, como bem preconiza John Rawls. Por fim, não pode passar batida a ironia da comparação feita por Barroso entre o aborto e o fumo, no sentido de que seria melhor dedicar esforços a apresentar os males da prática – afinal, se há algo no Brasil sujeito a inúmeras proibições, inclusive legais, é justamente o ato de fumar.

Uma sociedade que defenda o direito à vida do nascituro não é obscurantista e necessitada de “iluminação”, para usar outro tema muito caro a Barroso sobre o papel da suprema corte. Pelo contrário: nada pode ser mais esclarecido que uma sociedade consciente da necessidade de defender todos os seres humanos, da concepção à morte natural, concedendo proteção especial aos mais vulneráveis, incluindo o nascituro, mas também a mãe em situação de desespero – daí o famoso slogan pró-vida argentino “salvemos as duas vidas”. É esta convicção que precisa estar refletida no ordenamento legal e na jurisprudência, e não concepções que desprezam a vida humana indefesa e inocente, por mais “esclarecidas” que soem.

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