O estoque de frases de efeito e declarações bombásticas do ministro do STF Luís Roberto Barroso parece nunca ter fim. Duas semanas depois de dizer que “nós somos muito poderosos, nós somos a democracia, nós é que somos os poderes do bem” na Universidade Harvard, Barroso afirmou, também em evento realizado por uma instituição de ensino estrangeira – no caso, alemã –, que as Forças Armadas estão sendo orientadas a tumultuar o iminente processo eleitoral brasileiro. A afirmação levou a uma resposta bastante veemente do Ministério da Defesa e mostra, mais uma vez, o quanto afirmações feitas pela metade são capazes de abalar um relacionamento entre as instituições que deveria ser pautado pela harmonia e pela civilidade mesmo quando há divergências.
“Desde 1996 não tem um episódio de fraude no Brasil. Eleições totalmente limpas, seguras e auditáveis. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar? Gentilmente convidadas a participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo?”, questionou o ministro, acrescentando que “todos nós assistimos repetidos movimentos para jogar as Forças Armadas no varejo da política. Isso seria uma tragédia para a democracia. Isso seria uma tragédia para as Forças Armadas, que levaram três décadas para se recuperarem do desprestígio do regime militar e se tornarem instituições valorizadas e prestigiadas pela sociedade brasileira”. Por fim, no entanto, Barroso ressalta que até agora as Forças Armadas têm se portado com “profissionalismo e respeito à Constituição”, apesar de reclamar do afastamento de alguns militares “admirados”, como os generais e ex-ministros Carlos Alberto Santos Cruz e Fernando Azevedo e Silva.
Ao fazer acusações sem provas e sem acusados, é Barroso quem, neste momento, cria tumulto, mesmo na hipótese de seu elogio às Forças Armadas ter sido autêntico, e não uma tentativa de “enquadrar” os militares
Barroso pode estar até sendo perfeitamente genuíno em seu elogio aos militares, que ele mesmo convidou, quando presidia o Tribunal Superior Eleitoral, para contribuir com análises sobre a segurança das urnas eletrônicas. E, de fato, absolutamente nada até o momento indica que as Forças Armadas estejam se movimentando para desacreditar de alguma forma o processo eleitoral. Mesmo assim, há uma dose considerável de leviandade nas palavras do ministro – que já nem integra mais a corte eleitoral, aliás – e que justificam, ao menos em parte, a reação mais exaltada na nota assinada pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira.
Afinal, como Barroso sabe que as Forças Armadas “estão sendo orientadas” a desacreditar o processo eleitoral? Teria ouvido relatos de fontes militares? E mais: se há alguém “sendo orientado”, é porque existe quem esteja orientando. Quem está, então, incentivando os militares a colocar em xeque as eleições? Se Barroso sabe, não diz, contentando-se em deixar a dúvida pairando no ar, quando já deveria ter dado toda a publicidade possível ao caso e tomado as providências necessárias; se não sabe, pior ainda, pois fala do que não tem conhecimento. Em ambos os casos, ele se porta, sim, de forma “irresponsável”, para usar uma das palavras do comunicado da Defesa. É acusação seriíssima, a de que há algum agente empenhado em empurrar as Forças Armadas para o caminho da intromissão na política, e ela não pode ser feita dessa forma, deixando fios soltos e, no máximo, algumas insinuações – pois todos sabem quem decidiu o afastamento dos generais aos quais Barroso se referiu em sua fala.
Há, é verdade, uma outra possibilidade. As Forças Armadas, respondendo ao convite de Barroso, fizeram uma série de recomendações ao TSE, que admitiu ao Centro de Defesa Cibernética do Exército (CDCiber) ter identificado 712 riscos (68 deles considerados “críticos”) na área de tecnologia da informação da corte desde o pleito de 2018. A corte enviou uma longa resposta ao Exército, dias atrás, e que foi tornada pública. Se por um lado os militares não chegaram a manifestar publicamente nenhuma reserva à resposta do TSE, por outro a Gazeta do Povo apurou que a cúpula das Forças Armadas ainda não ficou plenamente convencida. Um dos questionamentos referia-se à auditoria externa nos novos modelos de urna eletrônica, que corresponderão a quase 40% dos equipamentos usados em outubro; o próprio TSE admite que elas não foram submetidas ao Teste Público de Segurança (TPS) de 2021, que usou urnas do modelo anterior, e que as novas urnas foram auditadas apenas pelos próprios técnicos da corte, diretamente na linha de produção.
E o TSE tem desqualificado veementemente qualquer crítica ou questionamento sobre a segurança das urnas eletrônicas, colocando no mesmo balaio das “fake news” tanto teorias da conspiração tresloucadas quanto observações bem embasadas, de cunho eminentemente técnico. Esta leitura, completamente equivocada, inclusive descarta contribuições que poderiam ser significativas para incrementar o processo eleitoral. O mero questionamento de ordem técnica, feito por especialistas na área de segurança da informação, faz parte da democracia; não pode ser sumariamente descartado como fake news, muito menos como “golpismo” ou “desmoralização” da eleição. Mesmo na hipótese de as Forças Armadas decidirem não ratificar a segurança das urnas por motivos técnicos, seria extremamente leviano atribuir aos militares uma intenção desestabilizadora; a situação exigiria ainda mais transparência no tratamento das objeções que eventualmente forem feitas.
Neste momento, a prioridade de todos os envolvidos deveria ser a segurança e a lisura de um processo eleitoral que tem tudo para ser dos mais tensos da história recente do país. Ao fazer acusações sem provas e sem acusados, é Barroso quem, neste momento, cria tumulto, mesmo na hipótese de seu elogio às Forças Armadas ter sido autêntico, e não uma tentativa de “enquadrar” os militares para que não saiam da linha. As eleições ocorrem sob a tutela da Justiça Eleitoral, não das Forças Armadas, a quem cabe garantir que a votação transcorra sem problemas; se cada ator está de fato empenhado em cumprir seu papel, ilações como as feitas por Barroso – talvez o mais afeito aos holofotes entre os atuais ministros do Supremo – são uma distração desnecessária e até perigosa, tudo de que a democracia brasileira não necessita.
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