Em 12 de outubro, participando de um evento bancado por empresários brasileiros em Roma, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, chamou a ideia de que existe “um grande nível de ativismo judicial” de “mito” que ele “gostaria de desfazer”. Um mês e meio depois, ao abrir o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, o mesmo Barroso deixou escapar, com ares de magnanimidade, a confissão de que o ativismo judicial é bastante real. “O tribunal aguardou, por um período bastante razoável, a sobrevinda de legislação por parte do Poder Legislativo. Não ocorrendo, chegou a hora de decidirmos essa matéria”, afirmou.
Não poderia haver definição melhor de ativismo judicial, vinda da boca de um dos seus principais defensores. Afinal, de que “sobrevinda de legislação” estaria Barroso falando, já que o Marco Civil da Internet existe desde 2014? Não se trata, portanto, do fato de não existir legislação, pois ela existe; o problema está no fato de alguns setores do Supremo não gostarem do que o legislador decidiu, nem do fato de ele ainda não ter ajustado a lei para que coincida com as opiniões dos ministros do STF. E, na mente dos membros da corte, isso basta para habilitá-los a tomar nas próprias mãos a tarefa de reescrever a lei.
Uma vez provocada, a corte abraça com gosto a possibilidade de redigir legislação de acordo com seus pendores “iluministas”, sob o pretexto de fazer “controle de constitucionalidade”
A rigor, ainda que não houvesse legislação alguma sobre o tema, continuaria não sendo missão do Supremo elaborar tais regras, como não seria função do Poder Legislativo decidir controvérsias no lugar do STF caso os ministros demorassem demais, na avaliação dos congressistas, para julgar uma ação. A independência entre poderes significa, entre outras coisas, que um deve respeitar os tempos do outro e entender que a “não decisão” – como, por exemplo, a paralisação na tramitação do “PL das fake news”, com dispositivos que contam com a simpatia de alguns dos ministros mais liberticidas da corte – não deixa de ser uma maneira de o parlamento se pronunciar.
O Supremo não entende ou não quer entender nada disso, e ainda conta com a ajuda de muitos outros insatisfeitos, inclusive dentro do próprio parlamento. Ainda que não seja o caso específico das ações sobre o Marco Civil da Internet, é muito frequente que, diante de uma lei que lhes desagrada, alguns atores públicos rapidamente busquem o STF alegando uma inconstitucionalidade qualquer (às vezes nem isso): é o modus operandi comum de setores militantes do Ministério Público, de entidades da sociedade civil organizada, e de partidos políticos, deputados e senadores inconformados com a dinâmica democrática que lhes impõe derrotas no Congresso. Uma vez provocada, a corte abraça com gosto a possibilidade de redigir legislação de acordo com seus pendores “iluministas”, sob o pretexto de fazer “controle de constitucionalidade”.
Assim, ignora-se a vontade do povo, fonte de todo o poder, exercida por meio de seus representantes diretos – ao menos é o que diz o artigo 1.º da Constituição –, substituída pela vontade dos ministros de “empurrar a história na direção certa”, como disse Barroso ao assumir a presidência do STF em 2023. “Direção certa”, no caso, é a direção que o próprio presidente da corte e seus colegas consideram ser a certa, evidentemente. A democracia fica substituída pela juristocracia, o governo dos tribunais, com toques de autodeclarada sofocracia, o “governo dos sábios”, já que ao menos alguns dos ministros se julgam a encarnação da sabedoria e do bom senso, em oposição ao populacho, os “manés” que não sabem o que é melhor para si.
Difícil saber se a admissão de Barroso sobre o ativismo judicial da corte será devidamente percebida por quem se preocupa com os rumos tortos que a democracia vem tomando no Brasil. Mas quem ainda não está anestesiado a ponto de normalizar essa hipertrofia do STF agradece pelo fato de o ministro ter deixado, ao menos por um momento, de negar as aparências e disfarçar as evidências do ativismo, para citar uma canção muito ao gosto do presidente do Supremo. Recuperar a separação entre poderes é um passo importante para reerguer a cambaleante democracia brasileira.
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