“O Poder Judiciário no Brasil (...) viveu e vive ainda um vertiginoso processo de ascensão institucional. Deixou de ser já há um tempo um departamento técnico especializado. Passou a ser um poder político na vida brasileira.” Quando tais palavras vêm de um dos membros do Supremo Tribunal Federal, faria sentido que tivessem vindo em tom de lamentação, quem sabe de um ministro frequentemente vencido por uma maioria empenhada em fazer do STF esse “poder político”. Mas não: vieram de alguém que não esconde sua satisfação e seu orgulho em relação a esse processo, que ele já defendeu em outros termos no passado. Trata-se de Luís Roberto Barroso, para quem a suprema corte tem um papel “iluminista” e precisa “empurrar a história”.
Falando na abertura do Encontro do Conselho de Presidentes de Tribunais de Justiça do Brasil, em Porto Alegre, Barroso afirmou que “houve mudança na natureza, no papel, na visibilidade, nas expectativas que existem em relação do Poder Judiciário”, e defendeu a corte das críticas ao ativismo judicial, afirmando que as reclamações não passam de queixa de maus perdedores, inconformados quando o Supremo toma decisões que os contrariam. “Aí, sinto muito”, acrescentou, de forma ligeiramente mais elegante que o “perdeu, mané” com que respondeu a um brasileiro em Nova York.
O Judiciário de que o Brasil necessita não é nem “poder político”, nem ativista, mas garantidor do cumprimento das leis e da segurança jurídica, com a credibilidade que uma atuação imparcial lhe garante
O ministro afirmou que o ativismo real é uma situação extremamente rara, e a definiu como “a decisão pela qual um juiz interpreta um princípio vago para reger uma situação que não foi contemplada nem pelo legislador nem pelo constituinte”. Curiosamente, e de certa forma demonstrando a fragilidade dessa definição, Barroso citou o caso das uniões homoafetivas, afirmando que “não havia lei regendo a matéria”. Ora, havia (e ainda há) o artigo 226 da Constituição, que os ministros ignoraram em 2011. Aliás, a essência do ativismo judicial atual do Supremo está justamente naquilo que Barroso atribui aos descontentes: quando a lei não agrada aos ministros, eles se encarregam de reescrevê-la; praticamente todos os casos recentes de ativismo judicial consistem no ato de o Supremo assumir o papel de legislador, criando ou alterando normas sem ter recebido do povo o poder para tal.
E isto nos traz ao que há de mais preocupante na fala de Barroso: a normalidade com que ele descreve o fato de o Judiciário ter se tornado “poder político”, ultrapassando os limites tradicionais, conhecidos desde que a tripartição de poderes foi estabelecida e consagrados nos ordenamentos jurídicos de todas as nações democráticas. No caso do Supremo, seu papel está bem definido no artigo 102 da Carta Magna: “a guarda da Constituição”. Seu critério não é político, é técnico; ministros não julgam, ou ao menos não deveriam julgar, de acordo com as próprias convicções, mas de acordo com a letra da lei. O poder político é o dos representantes eleitos pelo povo – estes, sim, agem guiados pelos princípios que defendem, os seus e os de seus eleitores. Mesmo quando esses representantes abrem mão voluntariamente deste poder, querendo que o Judiciário decida sobre temas que pertencem ao parlamento, o papel do juiz é recusar este papel, como bem lembrou Luiz Fux no seu importante discurso de posse na presidência do Supremo, em 2020.
Curiosamente, Barroso não percebe a incoerência de sua argumentação. Não há como o STF, ou o Judiciário como um todo, se tornar um “poder político sem ativismo”. O poder político é naturalmente ativista, no sentido de buscar fazer prevalecer as suas ideias todo o tempo. A afirmação de Barroso dá sequência às tristes declarações de Dias Toffoli sobre o papel do Supremo como “editor de uma nação inteira” ou como “poder moderador”. Mas quem deseja governar ou legislar de acordo com as próprias ideias precisa submeter seu nome e suas plataformas ao escrutínio popular; o Judiciário e seus membros necessitam, para o próprio bem da democracia, da isenção necessária à função de julgar as demandas e defender a Constituição e as leis. O Judiciário de que o Brasil necessita não é nem “poder político”, nem ativista, mas garantidor do cumprimento das leis e da segurança jurídica, com a credibilidade que uma atuação imparcial lhe garante.