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CNC pede ao Supremo suspensão da lei que regulamenta bets
Beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões com bets só em agosto, diz Banco Central.| Foto: Bruno Peres/Agência Brasil.

As plataformas on-line de apostas – especialmente esportivas –, apelidadas “bets”, se tornaram onipresentes no Brasil. Patrocinam torneios, estampam os uniformes de praticamente todos os principais clubes de futebol, dominam os intervalos comerciais nas emissoras de televisão. Mas dados recentes divulgados pelo Banco Central mostram que tão grande quanto sua visibilidade atual é o problema econômico e de saúde pública em que elas se transformaram, e que demanda ação imediata por parte do poder público: uma combinação perversa entre os mecanismos psicológicos do vício e a ilusão do enriquecimento fácil está privando milhões de famílias do básico de que necessitam para viver.

Só em agosto, 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família – ou seja, a parcela mais pobre e vulnerável da população – gastaram R$ 3 bilhões com apostas em bets. O valor inclui apenas o dinheiro enviado por meio de Pix, sem contar as remessas por cartão de débito ou crédito. Os R$ 3 bilhões representam um quinto do gasto do governo com o programa de redistribuição de renda no mês passado, e os 5 milhões de beneficiários apostadores também correspondem a cerca de 20% do total de brasileiros atendidos pelo Bolsa Família. “A correlação entre pessoas que recebem Bolsa Família, pessoas de baixa renda, e o aumento das apostas tem sido bastante grande (...) A gente pega o ticket médio, subiu mais de 200%”, afirmou o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, em evento na terça-feira, dia 24. Ele também chamou a atenção para o risco de inadimplência, e uma outra pesquisa aponta para o mesmo problema: cerca de 30% dos brasileiros com conta em banco tomaram empréstimos com a finalidade de apostar nas bets nos últimos 12 meses. Nada menos que dois terços desse grupo são formados por pessoas que ganham de um a três salários mínimos.

São tão numerosas as disfunções existentes e os desvios praticados que nem é necessário ter de aprofundar a reflexão e a argumentação para admitir restrições severas ao funcionamento das bets

É aberrante que brasileiros abaixo da linha da pobreza deixem de comprar itens de primeira necessidade para fazer apostas, desesperados pelo enriquecimento fácil que a publicidade das bets promete. E as sugestões para combater o problema variam muito em gênero e escala. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que só enxerga arrecadação, promete “tratar jogos como se trata cigarro” na eventual regulamentação das bets, mas não abre mão dos bilhões em impostos que as apostas proporcionarão a partir de 2025. O ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, prometeu apurar o uso de recursos do Bolsa Família em apostas. E a Confederação Nacional do Comércio pediu ao STF que suspenda a “lei das bets”, sancionada em 2023, usando como principal argumento o prejuízo econômico ao setor, já que dinheiro gasto em apostas não vai para o comércio varejista.

A vertente do liberalismo que a Gazeta do Povo defende, o liberalismo perfeccionista, entende que cabe, sim, ao Estado, precisamente para promover a liberdade e autonomia individuais, atuar tanto para prevenir riscos sistêmicos à liberdade quanto para garantir a criação de opções de vida valiosas. Ao aplicarmos este princípio ao caso das bets, percebemos que são tão numerosas as disfunções existentes e os desvios praticados que nem é necessário ter de aprofundar a reflexão e a argumentação para admitir restrições severas ao seu funcionamento.

Verifica-se, de largada, uma desproporção evidente entre os benefícios, praticamente nulos, e os prejuízos da atividade das bets. O dano mais evidente é o próprio vício em jogos, classificado como doença pela Organização Mundial da Saúde, que destrói não só o adicto, mas todo o seu entorno. Dada a magnitude do fenômeno, o dano sistêmico envolve uma transferência gigantesca de riqueza para o exterior e o empobrecimento e perda de vitalidade de parcela significativa da população. Quanto às disfunções, basta mencionar as práticas publicitárias, incompatíveis com a veracidade e a razoabilidade; a irregularidade de modalidades de aposta que caracterizam pura e simplesmente jogos de azar; as práticas de oferecimento de crédito fácil, que aceleram ainda mais a adição impulsiva; a ausência de qualquer trava ou dificuldade que leve uma pessoa a pausar, refletir e, com responsabilidade, desistir de continuar apostando; o acesso quase irrestrito aos jovens; e tudo isso por meio da apropriação de uma atividade bela e envolvente, o esporte. Destaquem-se, ainda, as potenciais atividades criminosas, como lavagem de dinheiro, dificilmente fiscalizáveis no caso das bets. Tudo isso mais que justifica uma ação estatal, e para já.

De imediato, há uma série de medidas que poderiam ser tomadas, e que vão muito além da obrigação de inócuos avisos sobre o perigo do vício: mudar as regras do Bolsa Família para punir o uso desse dinheiro (que é público, recorde-se) em apostas, por constituírem um claro desvio de finalidade do programa; ou restringir drasticamente a publicidade das bets, a exemplo do que ocorre hoje com o cigarro, são ideias que deveriam estar imediatamente na mesa. No entanto, elas só atacam uma pequena parte da enorme lista que acabamos de elencar, e por isso não se pode descartar – pelo contrário, pode ser inclusive aconselhável – uma revogação do status legal de que as bets gozam hoje no Brasil, tornando-as proibidas, assim como ocorre com os cassinos – a cuja legalização a Gazeta se opõe. Ressalte-se, aliás, que, em comparação com os cassinos, as bets oferecem uma facilidade de acesso muito maior, como já lembramos, e nem sequer trazem o eventual fluxo turístico que os defensores dos cassinos prometem.

Não se trata, portanto, de intervencionismo desproporcional ou mero paternalismo. Da mesma forma, é preciso rejeitar o argumento puramente pragmático pelo qual o proibicionismo é inócuo, já que as pessoas continuarão apostando, assim como continuam consumindo drogas – levado ao extremo, ele justificaria a abolição do Código Penal como um todo. Uma vedação legal não se justifica por sua eficácia, mas pelo seu caráter de indicação do rumo que uma sociedade quer tomar. Queremos ser um país de pobres viciados e endividados, em que “a casa sempre ganha” à custa da miséria dos brasileiros? Da resposta a essa questão depende a solução para o dilema que as bets colocaram diante do Brasil.

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