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Editorial

Os bloqueios contra o coronavírus e o direito de ir e vir

Transporte interestadual está suspenso ou restrito em vários estados por decisão de governadores. (Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo)

Na quarta-feira, brasilienses que foram a um posto de saúde que aplicava a vacina contra a gripe no sistema de drive-thru só conseguiram se imunizar porque haviam sobrado algumas doses do dia anterior. Como o voo que levaria um novo lote de vacinas já tinha sido cancelado, decidiu-se realizar o trajeto entre a capital paulista e a capital federal de caminhão, com chegada prevista às 14 horas. No entanto, o veículo acabou retido em Goiás, atrasando ainda mais a viagem. O episódio, ainda que de alcance bastante limitado, mostra como algumas ações de governadores e prefeitos tomadas em nome do combate ao coronavírus podem estar cruzando um limite perigoso em relação aos direitos individuais e, neste processo, até mesmo atrapalham o objetivo que dizem querer alcançar.

Levantamento do jornal O Estado de S.Paulo publicado na quarta-feira, 25 de março, afirmava que havia bloqueios de algum tipo em pelo menos 22 estados brasileiros. Não se trata apenas das chamadas “barreiras sanitárias”, em que pessoas que chegam a um local têm sua temperatura medida, e que são permitidas pela lei: a maioria das restrições afeta o direito de ir e vir, com fechamento total de divisas (caso, por exemplo, de Santa Catarina, Piauí e Ceará) ou proibição do transporte de passageiros interestadual, ou então com o bloqueio físico à entrada de várias cidades. Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, interveio até mesmo nos aeroportos, proibindo voos provenientes de certos países ou estados e gerando reação imediata da Agência Nacional de Aviação Civil.

O artigo 22, inciso XI da Constituição afirma que apenas a União pode legislar sobre trânsito e transporte, o que de imediato proíbe ações unilaterais dos estados no fechamento de suas divisas. Mas, em seu parágrafo único, acrescenta que “lei complementar poderá autorizar os estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”. No caso, a Lei 13.797/20, votada enquanto se fazia esforços para repatriar brasileiros na China, afirma que as autoridades, “no âmbito de suas competências”, poderiam adotar “restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos”, ou seja, sem nenhuma referência a fechamento de divisas estaduais.

A saúde pública é um bem que o poder público tem o dever de proteger, mas isso precisa ser feito de forma que não se restrinja liberdades de forma desnecessária ou abusiva

Foi só em 20 de março, pela Medida Provisória 926, que Bolsonaro incluiu a “locomoção interestadual e intermunicipal” entre as atividades sujeitas a restrição. Governadores e prefeitos viram na MP um sinal verde para fechar divisas e acessos, e simplesmente ignoraram a necessidade de recomendação da Anvisa. Por fim, em 23 de março, o governo capitulou e publicou resolução assinada pelo diretor-presidente da Anvisa, delegando às Vigilâncias Sanitárias estaduais a capacidade de elaborar pareceres que embasassem os bloqueios e, na prática, validando um “cada um por si” em que até mesmo o transporte de itens valiosos para a saúde das pessoas acaba prejudicado por fiscais mais “zelosos”, como na situação que retardou a chegada do lote de vacinas a Brasília.

No dia seguinte, o Supremo Tribunal Federal entrou no imbróglio quando o ministro Marco Aurélio Mello decidiu liminarmente manter o poder de estados e municípios sobre os respectivos acessos. Quando o plenário da corte julgar o mérito da ação proposta pelo PDT, terá de responder a uma série de perguntas. Fechar as próprias divisas ou acessos faz parte das “competências” (para usar a expressão da Lei 13.797), respectivamente, de estados e municípios? Se o bloqueio em um estado ou município também afeta estados e municípios vizinhos, ele pode ser definido unilateralmente? E, o mais importante: o direito constitucional de ir e vir não está sendo indevidamente restringido?

Esta última questão, mais que as considerações a respeito de leis infraconstitucionais, medidas provisórias ou resoluções, deveria nortear a discussão. Regular as fronteiras nacionais, inclusive com o direito de barrar a entrada de pessoas em alguns casos, sempre foi prerrogativa de governos mundo afora, mas o que dizer quando entes subnacionais impedem o trânsito de brasileiros dentro de seu país? Afinal, não estamos em estado de sítio, a única situação prevista na Constituição em que se pode relativizar o direito de ir e vir de forma mais agressiva. O isolamento adotado como forma de reduzir a velocidade de contágio do coronavírus é recomendação ou uma obrigação? Os cidadãos continuam a ter suas necessidades e seus motivos para se deslocar dentro do país; na impossibilidade de testar rapidamente todos os que pretendem entrar em uma cidade ou estado, é razoável presumir que toda pessoa que não tenha febre seja um portador assintomático do vírus, pronto para espalhá-lo no destino ao qual se dirige?

E, além dos bloqueios, há outras medidas que impedem a circulação de pessoas e que também devem nos preocupar. É o caso do decreto de Porto Alegre (RS) que proíbe pessoas acima de 60 anos de sair às ruas – com a exceção de deslocamentos para vacinação, atendimento médico e compras em mercados ou farmácias – ou o ainda mais restritivo decreto de Campo Grande (MS) que impõe toque de recolher em toda a cidade das 20 horas às 5 horas da manhã seguinte, prevendo apreensão de veículos e condução à delegacia daqueles que não comprovarem motivo aceitável para estar na rua.

O STF faria bem se analisasse os bloqueios (e outras medidas restritivas que porventura sejam questionadas na corte) usando o princípio da proporcionalidade. Parece claro que o crivo da adequação (“a medida é eficaz para conseguir o objetivo desejado?”) está atendido, pois, se a intenção é controlar o surto, impedindo a proliferação do vírus decorrente da entrada de pessoas contaminadas, o bloqueio cumpre essa função; segue-se o critério da necessidade: há medidas menos restritivas e igualmente eficazes? Aqui será preciso fazer uma análise técnica de opções como, por exemplo, a identificação e a quarentena dos infectados ou que efetivamente apresentem os sintomas da Covid-19. Caso se conclua que bastam essas ações, este deverá ser o caminho a seguir. Mas, se elas não forem suficientes, resta a análise final dos bloqueios pelo critério da proporcionalidade em sentido estrito: o fato de eles preservarem a saúde de quem já está na área bloqueada compensa a redução da liberdade advinda desta restrição ao direito de ir e vir?

Conter a disseminação do coronavírus é importante, e os governos não podem se omitir nessa missão. A saúde pública é um bem que o poder público tem o dever de proteger, mas isso precisa ser feito de forma que não se restrinja liberdades de forma desnecessária ou abusiva. Situações extraordinárias como a causada pela pandemia pedem medidas extraordinárias e todos os fatores precisam ser colocados na balança. Há condições muito específicas sob as quais se pode admitir restrição às liberdades fundamentais, e a defesa dessas liberdades também exige a aceitação de certos riscos, como lembrou recentemente o colunista da Gazeta do Povo Guilherme de Carvalho. Por isso, e tendo em mente que a seriedade da pandemia levará governantes e governados a preferir os erros por excesso de zelo que por falta dele, é preciso ter bem claros quais são os limites que convém não cruzar. Houve uma certa naturalidade com que governadores e prefeitos adotaram os bloqueios e toques de recolher, e com que eles foram aceitos por parte da população. Pode-se compreender a reação num primeiro momento, mas é preciso também estar atento ao risco de que restrições fortes como as que estão sendo imposta se tornem cada vez mais frequentes por motivos cada vez mais triviais. Por isso, passado o impacto inicial, agora é preciso enfrentar o tema de forma desapaixonada e avaliar a adequação das medidas para não deixar portas abertas ao arbítrio.

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