O secretário especial de Comunicação, Fabio Wajngarten.| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A manchete do jornal Folha de S.Paulo deste domingo gerou reações fortes tanto do presidente Jair Bolsonaro quanto do secretário especial de Comunicação, Fabio Wajngarten. A reportagem reproduz depoimento dado à polícia por um ex-assessor do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, que sugeriria uso de dinheiro de caixa dois na campanha presidencial. Nas mídias sociais, após afirmar que o jornal “avançou todos os limites” e conseguiu “descer às profundezas do esgoto”, Bolsonaro escreveu que “o que mais me surpreende são os patrocinadores que anunciam nesse jornaleco”. Wajngarten seguiu o tema do presidente, ao pedir, no Instagram, “que os anunciantes que fazem a mídia técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para não se associarem a eles preservando suas marcas”, sem mencionar nenhum jornal, revista ou canal de televisão. Mais uma vez, o papel da imprensa é colocado em xeque, o que exige uma reflexão desapaixonada sobre o trabalho jornalístico, opções ideológicas e como o governo deve se posicionar diante das críticas.

Teria a Folha de S.Paulo cometido algo ilícito ao publicar a reportagem escolhida para manchete do jornal? Aqui, é preciso fazer uma distinção importante. Uma simples troca de acusações, quando desacompanhada de elementos que comprovem sua veracidade ou falsidade, não deveria ser notícia – a não ser que estejamos tratando de acusações feitas por uma pessoa pública a outra pessoa pública, sobre temas de indubitável interesse público, o que se aplica ao caso em tela; por isso, ainda que as acusações ainda careçam de comprovação, uma publicação não comete ilícito quando as leva a público. Além disso, o caráter “oficial” advindo do fato de se tratar de declarações prestadas à polícia é apenas um reforço, já que a publicação se justificaria mesmo se o ex-assessor tivesse procurado diretamente os jornalistas para fazer a acusação. É preciso recordar, por exemplo, que todo o escândalo do mensalão estourou quando o então deputado Roberto Jefferson procurou uma jornalista da mesma Folha de S.Paulo. E podemos fazer uma analogia com um exemplo recentíssimo: a explosiva delação do ex-ministro Antônio Palocci, que implica os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, além de uma série de ministros e chefões petistas. A mesma lógica que embasa a divulgação da delação de Palocci – e há quem critique, neste caso, uma suposta “omissão” da imprensa, que estaria “escondendo” o conteúdo – também justifica a publicação das acusações do ex-assessor do ministro do Turismo.

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Mesmo as ideias equivocadas têm o direito de serem defendidas publicamente

Esclarecido este ponto, é preciso tratar de outro tema que frequentemente causa mal-entendidos. Todo veículo de comunicação tem as suas próprias convicções e visões de mundo, que se refletem de maneira mais evidente nos textos de opinião – seus editoriais, o elenco de colunistas, a escolha de artigos –, mas também transparecem na reportagem, especialmente na escolha dos temas que se considera importante abordar. Esta divergência é uma consequência da própria liberdade de expressão. Não queremos, com isso, dizer que todas as opiniões são iguais, como pretendem os defensores de um certo relativismo que não passa de um “vale-tudo” moral em que prevalece não a verdade, mas quem fala mais alto. Mesmo as ideias equivocadas têm o direito de serem defendidas publicamente. Não cabe ao Estado estabelecer um cânone do certo e do errado, impondo-o à imprensa, à universidade ou a qualquer outro ambiente que deve primar pela livre circulação de ideias, desde que respeitada a dignidade humana.

E, quando alguém defende ideias que consideramos errôneas, isso não significa que esteja necessariamente agindo de má-fé. Em uma sociedade altamente polarizada como a nossa, torna-se um desafio compreender isso e não assumir imediatamente a má intenção diante de certa reportagem ou texto opinativo. Mas a realidade é bem mais complexa; é razoável que pessoas de boa vontade tenham percepções diferentes (às vezes, radicalmente diferentes) a respeito de um mesmo tema, e a nossa própria experiência pessoal pode ajudar a entender esse fato. Todos temos em nossos círculos de amigos e dentro da família pessoas com opiniões diversas das nossas. Podemos discordar delas, pode nos custar muito entender como é possível que alguém tão querido tenha determinado posicionamento. Mas presumimos a boa fé desses amigos e parentes; consideramos que, mesmo enganados, eles agem com sinceridade e honestidade intelectual.

Pois o mesmo vale para os veículos de comunicação e as pessoas que neles trabalham: é preciso presumir a sua boa fé, e não a sua má-fé. Isso não é nada fácil, e pode ser extremamente difícil, mas temos de compreender que existe um direito à divergência. Essa boa fé, evidentemente, não isenta ninguém de enganos ou da publicação de informações falsas; neste caso, o atingido tem todo o direito de estar indignado, e a publicação tem a obrigação de retificar o que divulgou anteriormente. Por certo, seria ingenuidade crer que nunca há casos que realmente envolvem malícia, mas o equívoco está em presumir que a mentira, a manipulação e a falta de ética sejam comportamentos que os veículos de comunicação decidiram conscientemente adotar como padrão.

No entanto, é exatamente isso o que vem ocorrendo. Não é segredo para ninguém que, assim como nos Estados Unidos a maioria dos grandes veículos de comunicação se opõe a Donald Trump, no Brasil a mesma dinâmica se aplica ao presidente Bolsonaro. Mas a crítica é lida pelos dois presidentes como uma declaração de guerra e, assim, eles usam as mídias sociais para promover um ataque generalizado ao trabalho jornalístico como um todo, presumindo aquela má-fé de que falávamos. Esta não é uma exclusividade dos atuais presidentes brasileiro e norte-americano – foi na era petista que se cunhou a expressão “mídia golpista”, com militantes chegando ao ponto de hostilizar jornalistas e atacar instalações de órgãos de imprensa. Mas Bolsonaro tem ido além, chegando a ironizar o fato de que haveria “menos lucro para os jornais” ao comentar uma MP que tornava facultativa a publicação de balanços em veículos impressos.

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Em um ambiente de livre circulação de ideias, com uma imprensa vibrante e com veículos que cobrem um amplo leque de posições políticas e ideológicas, o último critério que um governo poderia usar para definir suas políticas em relação aos veículos de comunicação é o fato de gostar ou não gostar do que é publicado. O princípio da impessoalidade nos atos públicos exige, no caso da verba publicitária governamental, os critérios que Wajngarten chamou de “mídia técnica”: trata-se de buscar os veículos mais lidos, assistidos ou ouvidos entre seu público-alvo, independentemente de ideologia. É algo muito elementar, mas que anos e anos de uma cultura governamental de favorecimento aos amigos e ataques aos críticos fizeram sumir em boa parte da sociedade brasileira. A controvérsia atual, no entanto, acrescenta mais um aspecto, envolvendo os anunciantes privados.

As discordâncias não justificam que um governo enxergue um órgão de imprensa como um inimigo a ser destruído pela pressão estatal

Uma empresa não está regida pela impessoalidade ao alocar sua verba publicitária. Pode anunciar em veículos alinhados aos valores da companhia, mas também pode seguir os critérios técnicos descritos acima. Ao insinuar que essas empresas deveriam repensar sua política de anunciar em veículos de grande audiência, mas contra os quais o governo lança sua artilharia, Wajngarten se dirigiu diretamente aos anunciantes que usam critérios técnicos, mas sabe que o recado é ouvido por todos. O secretário de Comunicação, assim, faz uma pressão de caráter político-ideológico sobre anunciantes, e não podemos deixar de perguntar que tipo de contratempos uma empresa poderá enfrentar se continuar anunciando, por exemplo, na Folha de S.Paulo.

Esse tipo de postura revela uma incompreensão grave sobre a liberdade de imprensa e, objetivamente, um comportamento antidemocrático. Bolsonaro e Wajngarten invertem a lógica petista; antes, sites e blogs chapa-branca recebiam verba publicitária abundante e totalmente descolada do critério técnico; agora, a intenção, declarada desde a campanha, é sufocar os veículos vistos como “adversários” negando-lhes o dinheiro dos anúncios – e, na impossibilidade de fazê-lo diretamente, manda-se “recados” a empresas privadas, pressionando-as e intimidando-as para com isso atingir os órgãos de imprensa vistos como adversários.

Falta, aqui, a compreensão de que uma democracia digna do nome inclui veículos de imprensa com posicionamentos variados, e a crítica ao governo – mesmo quando infundada – é consequência natural desta pluralidade. A ideias equivocadas é preciso contrapor ideias boas, e informações falsas são combatidas por meio da exposição da verdade. As divergências não justificam que um governo enxergue um órgão de imprensa que defenda ideias das quais o mandatário discorda como um inimigo a ser destruído pela pressão estatal. Defender-se é direito do presidente, mas a escolha dos veículos nos quais anunciar políticas públicas é algo que o governo não pode fazer baseado em preferências político-ideológicas. Uma escolha desse tipo cabe não ao Estado, mas apenas ao leitor e ao anunciante privado, que devem exercer esse direito com toda a liberdade.

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