Brincadeira sem graça, ato falho ou confissão despudorada? O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o lançamento de um programa de incentivo ao setor aéreo, com desburocratização, desregulamentação e redução de custos, para falar de outro assunto completamente alheio ao tema da cerimônia: a Operação Lava Jato. E o fez de uma forma bastante infeliz. “É um orgulho, é uma satisfação que eu tenho dizer a essa imprensa maravilhosa nossa que eu não quero acabar com a Lava Jato, eu acabei com a Lava Jato porque não tem mais corrupção no governo”, afirmou.
As reações foram imediatas. No Twitter, sem citar especificamente a declaração de Bolsonaro, o ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro Sergio Moro escreveu que “as tentativas de acabar com a Lava Jato representam a volta da corrupção. É o triunfo da velha política e dos esquemas que destroem o Brasil e fragilizam a economia e a democracia. Esse filme é conhecido. Valerá a pena se transformar em uma criatura do pântano pelo poder?”. Em nota, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba afirmou que “o discurso indica desconhecimento sobre a atualidade dos trabalhos e a necessidade de sua continuidade”, e que a afirmação “reforça a percepção sobre a ausência de efetivo comprometimento com o fortalecimento dos mecanismos de combate à corrupção”.
Como o presidente da República afirma, sem ruborizar, que “acabou com a Lava Jato” e que isso é motivo de “orgulho” e “satisfação”?
O que todo brasileiro que apoiou desde o início o combate à ladroagem representado pela Lava Jato, e que votou em Bolsonaro justamente por repudiar o projeto cleptomaníaco petista, se pergunta agora é: como o presidente da República afirma, sem ruborizar, que “acabou com a Lava Jato” e que isso é motivo de “orgulho” e “satisfação”? Admitamos, por um instante que seja, que na verdade Bolsonaro quis dizer que seu governo não precisará de “uma Lava Jato” porque não é corrupto. Não seria, portanto, uma referência à Lava Jato propriamente dita, que continuaria na ativa, investigando a roubalheira dos governos anteriores, porque no de Bolsonaro não haveria nada a investigar.
A própria premissa usada pelo presidente tem lá suas falhas, dada a manutenção de Marcelo Álvaro Antônio, denunciado pelo caso dos “laranjas do PSL”, no Ministério do Turismo; e, principalmente, as inúmeras questões por responder envolvendo o senador Flavio Bolsonaro e seu ex-assessor Fabrício Queiroz, resvalando também no nome da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Mas, ainda que não houvesse a menor sombra de dúvida, a menor suspeita sobre a lisura de integrantes do governo ou do entorno de Jair Bolsonaro, a afirmação teria sido uma brincadeira sem graça, um chiste profundamente infeliz. O presidente usou de forma leviana e desastrosa o nome da mais bem-sucedida operação de combate à corrupção do país, dizendo que “acabou com ela” quando sua continuação se mostra mais que necessária, dadas as inúmeras ramificações do esquema criado pelo petismo, com o apoio de outros partidos e de empreiteiras, para pilhar as estatais.
E mesmo dando a Bolsonaro o benefício da dúvida sobre o real sentido de uma frase tão enfática, não há como negar que a Lava Jato real – essa, que já teve Moro e Deltan Dallagnol, e que ainda tem tantos membros valorosos no Ministério Público, na Polícia Federal e no Judiciário –, vem sendo minada, sim, por ações de Bolsonaro, a começar pela escolha de Augusto Aras, um crítico da operação, como procurador-geral da República. Aras está entre os que compraram a narrativa tão vaga quanto equivocada dos tais “excessos” da Lava Jato, grupo que, a julgar por declarações passadas, pode também incluir Kassio Nunes Marques, o escolhido de Bolsonaro para a vaga deixada por Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal.
Além disso, Bolsonaro deu sua contribuição para atrapalhar o combate à corrupção atual – ou seja, afetando a Lava Jato – e futura quando deu seu aval, por meio da sanção presidencial, à Lei de Abuso de Autoridade, que servirá de meio para réus e investigados retaliarem juízes e investigadores por atos que só eram abusivos na mente dos parlamentares que gestaram e aprovaram esse projeto. Muitos deles, aliás, estão no Centrão, o mais novo amigo de Bolsonaro no Congresso e que vem ocupando cada vez mais espaço no governo, tendo abocanhado vários cargos de vice-liderança no Congresso, além de postos de segundo e terceiro escalão em ministérios e estatais. Certamente há muitos membros importantes do grupo que adorariam ver Bolsonaro entregando-lhes a cabeça da Lava Jato em bandeja de prata.
Ter um governo honesto é obrigação. Mas “acabar com a Lava Jato” não é motivo nem de orgulho, nem de satisfação. Ninguém pretende uma Lava Jato perpétua; ela terá razões para terminar quando todas as perguntas sobre o megaesquema de corrupção estiverem respondidas e todos os responsáveis estiverem pagando pelos seus crimes. Mas, se um gestor público, com seus atos, levar a um encerramento prematuro da operação e criar empecilhos ao combate à corrupção, certamente será contado entre os que mais desserviço prestaram ao país, merecendo ser elencado ao lado dos corruptos. Que Bolsonaro reflita muito sobre que legado quer deixar ao país neste tema.