Um debate extremamente importante – como garantir que as eleições sejam um processo ainda mais confiável e que não desperte dúvidas quanto à sua lisura – foi completamente desvirtuado pela polarização política. Defensores e detratores do voto impresso auditável, que está em análise no Congresso Nacional, se organizam não em torno do mérito da proposta, mas pela posição de cada um em relação a Jair Bolsonaro, apoiador da PEC. Com algumas raras exceções, quem está alinhado ao presidente da República tende a defender o voto impresso, enquanto quem está na oposição o rejeita simplesmente por ser algo defendido por Bolsonaro.
E em nada ajuda a postura de alguns ministros do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. Em vez de guardarem postura de neutralidade a respeito do tema – até porque poderão ter de julgar o assunto caso o Congresso aprove o voto impresso e a oposição recorra ao STF para derrubar a norma –, eles engajam-se ativamente no debate e chegam até a participar de reuniões com líderes partidários que se organizam para barrar a PEC. A impressão de que os juízes já assumiram um lado e estão trabalhando por ele, quando deveriam se manter imparciais, serve apenas para criar mais desconfiança entre o eleitorado.
Se o presidente quiser implantar o voto impresso, não vai vencer essa batalha fazendo insinuações no cercadinho do Alvorada, mas mobilizando sua base de apoio no Congresso Nacional
Bolsonaro, no entanto, jogou muita gasolina na fogueira na sexta-feira, quando insinuou a possibilidade de não haver eleição em 2022. “Não tenho medo de eleições. Entrego a faixa a quem ganhar. No voto auditável. Nessa forma, corremos o risco de não termos eleição no ano que vem”, disse a apoiadores diante do Palácio da Alvorada, antes de insultar o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, contrário ao voto impresso.
Nem uma coisa nem outra contribuem com o aperfeiçoamento da democracia brasileira. A possibilidade de não se realizar eleições é algo que não se deveria mencionar nem mesmo como brincadeira ou como bravata. A mensagem que fica é a de que Bolsonaro estaria condicionando a realização das eleições ao fato de elas ocorrerem da maneira desejada por ele, e que não haveria pleito se ele fosse realizado “nessa forma” – ou seja, com o voto eletrônico atual, sem comprovante impresso, adotado inclusive na eleição que Bolsonaro venceu em 2018.
Ameaça, velada ou implícita, não é argumento, e nem mesmo um presidente da República tem o poder de impedir a realização de eleições. Basta imaginar como a sociedade reagiria com vigor caso um presidente de esquerda levantasse a hipótese de interromper um processo eleitoral por discordar da forma de sua condução. Brasileiros democratas invocariam o artigo 7.º da Lei 1.079/50, a lei do impeachment, que cita como crimes de responsabilidade do presidente da República “impedir por violência, ameaça ou corrupção, o livre exercício do voto” e “utilizar o poder federal para impedir a livre execução da lei eleitoral”. E o fariam com toda a razão, de tão grave que é a tentativa de interferir na realização das eleições.
O presidente tem à sua disposição um conjunto considerável de argumentos para usar em defesa do voto impresso, incluindo a experiência internacional – a Alemanha chegou a considerar uma eleição inconstitucional por terem sido usadas urnas eletrônicas sem a criação de um rastro físico que permitisse verificar os resultados. E, se Bolsonaro quiser resolver a questão de uma vez por todas, basta que apresente as provas das fraudes eleitorais que ele diz terem ocorrido tanto em 2018 – quando, segundo seu relato, ele teria vencido já no primeiro turno – quanto em 2014, ocasião em que, de acordo com o presidente, o segundo turno foi vencido pelo tucano Aécio Neves, e não pela petista Dilma Rousseff. Ora, quem acusa precisa provar; esta regra vale para tudo, desde as acusações ao presidente da CPI da Covid até as alegações de fraude eleitoral. Se comprovar que houve fraude eleitoral, Bolsonaro terá dado a prova irrefutável de que o sistema puramente eletrônico brasileiro é vulnerável e tem de ser aperfeiçoado. No entanto, o presidente resiste inexplicavelmente a apresentar as evidências que afirma ter.
Por fim, se o presidente quiser implantar o voto impresso, não vai vencer essa batalha fazendo insinuações no cercadinho do Alvorada, mas mobilizando sua base de apoio no Congresso Nacional. Bolsonaro trouxe o Centrão para o governo, mas partidos do Centrão estavam presentes na reunião com Barroso em que se tratou da articulação para barrar a PEC do voto impresso. O empenho de Bolsonaro precisa estar no trâmite legislativo do projeto; sem articulação política, o presidente sofrerá uma derrota no Congresso pelas mãos dos próprios ditos aliados. E, se for vencido no Legislativo, de nada adiantarão as ameaças: contornar as instituições para impor as próprias vontades não é solução aceitável no Estado Democrático de Direito.