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Editorial

O luto, o medo e a empatia

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O presidente da República, Jair Bolsonaro. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

O Brasil chegou ao momento mais grave da crise sanitária do coronavírus até o momento, com recordes diários em número de mortes comunicadas e redes hospitalares entrando em colapso em vários estados. É nessas circunstâncias que os discursos recentes do presidente Jair Bolsonaro sobre o tema precisam ser apreciados, pois foi justamente este o momento que ele escolheu para voltar a manifestar sua peculiar visão da pandemia e do que precisa ser feito para levar o país adiante. É triste, e quase inacreditável, deparar-se com um nível de insensibilidade tão elevado.

Reconheça-se a Bolsonaro o direito de se colocar ao lado dos que pendem mais para a defesa do retorno das atividades à normalidade, com o isolamento apenas dos idosos e dos que têm comorbidades que potencializam a ação do coronavírus. Mas não há como conceder-lhe o direito a estar desinformado, o direito a desorientar a sociedade, a desprezar tantas pessoas sérias que pensam legitimamente (e muito mais razoavelmente) de forma diferente dele... e, sobretudo, não temos como reconhecer o direito a debochar do luto das famílias dos mortos e da preocupação do brasileiro para que não se contamine com a Covid-19. “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, questionou na quinta-feira, dirigindo-se a produtores rurais em Goiás, durante a inauguração de um trecho da Ferrovia Norte-Sul.

É inacreditável que Bolsonaro seja incapaz de se solidarizar com o pai de família desempregado sem destratar na mesma frase os enlutados e os que têm medo da Covid-19

A afirmação não chega a ser uma novidade. Pelo contrário, ela é parte do discurso de Bolsonaro desde o “não sou coveiro”, em abril do ano passado, quando o país ainda registrava 2,6 mil mortos, mero 1% da contagem atual. Desde então, a coleção de demonstrações de desprezo pela dor e pela preocupação alheia só cresceu. “E daí?”, “é o destino de todo mundo”, “tem de deixar de ser um país de maricas”. É nessas frases que Bolsonaro se revela; ele até costuma emendar um “lamento, mas” antes de proferir suas pérolas, mas esse “lamento” soa completamente artificial diante do que vem na sequência.

Bolsonaro se preocupa com a economia. É uma preocupação legítima, tanto quanto a preocupação pela saúde, mas criou-se uma falsa dicotomia nesta discussão. “A economia a gente vê depois” é um slogan que ignora o balanço de todos os valores em jogo, pois o “depois” já chegou e está cobrando sua fatura no aumento da pobreza, do desemprego e da quebradeira de negócios. Quando Bolsonaro diz que “atividade essencial é toda aquela necessária para um chefe de família levar o pão para dentro de casa”, reflete o sentimento de muitos brasileiros que não sabem se conseguirão colocar comida na mesa de suas famílias. Mesmo a Organização Mundial de Saúde reconhece o efeito nocivo dos lockdowns sobre os mais pobres e adverte que essa não pode ser a medida primária de combate ao vírus, mas uma providência para ganhar tempo e reforçar a estrutura de saúde.

Se o lockdown é a medida correta diante das circunstâncias atuais é uma discussão que não pretendemos fazer aqui. De qualquer forma, não é insensibilidade defender que os negócios sigam funcionando, desde que respeitados todos os protocolos de segurança. Mas é insensibilidade, e das mais vergonhosas, fazer pouco do sofrimento das famílias daqueles para quem o “depois” não chegará nunca mais e da preocupação genuína daqueles que não querem se juntar a uma estatística tão triste. É inacreditável que Bolsonaro seja incapaz de se solidarizar com o pai de família desempregado sem destratar na mesma frase os enlutados e os que têm medo da Covid-19.

Um medo, aliás, que já estaria bem mais controlado se o país estivesse mantendo um ritmo adequado de vacinação. No entanto, Bolsonaro também se irritou com a justa cobrança para que o governo federal providencie mais vacinas. “Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo”, disse em Uberlândia (MG), antes do evento em Goiás. O proverbial extraterrestre que chegasse agora ao Brasil poderia até pensar que Bolsonaro sempre esteve empenhadíssimo em trazer vacinas ao país e está sendo prejudicado pela alta demanda global. Alguém teria de lhe explicar que este é o presidente que minimizou a importância das vacinas e lançou suspeita sobre elas antes mesmo de começarem a ser aprovadas. O presidente que comentou a morte de um voluntário da Coronavac (morte que não teve relação alguma com a vacina, diga-se de passagem) afirmando “mais uma que Jair Bolsonaro ganha”. O presidente que, em dezembro, disse que “a pressa pela vacina não se justifica”. O presidente que deixou passar oportunidades de assinar contratos que colocariam o país no começo da fila das encomendas e que julgou ser obrigação dos laboratórios procurar o governo brasileiro, e não o contrário, apesar de haver uma corrida global pelos imunizantes.

Bolsonaro quer saber: “Vão ficar chorando até quando?” Os brasileiros continuarão chorando enquanto o coronavírus seguir tirando vidas que poderiam ter sido salvas se os hospitais tivessem mais leitos e equipamentos, se não houvesse tantos irresponsáveis promovendo eventos de contaminação em massa, se a cobertura vacinal já fosse maior. Porque o luto e a preocupação consigo mesmo e com os demais são parte daquilo que nos faz humanos.

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