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Editorial

Bolsonaro e o Centrão

Bolsonaro busca apoio no Centrão. O que deu errado na tática do governo em buscar apoio em blocos parlamentares.
Bolsonaro busca apoio no Centrão após ver frustrado o alinhamento automático de blocos parlamentares com o governo. (Foto: José Cruz/Agência Brasil)

“Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. (...) Acabou... acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. (...) Chega da velha política! Agora é Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, disse um entusiasmado Jair Bolsonaro a apoiadores diante da sede do Exército, em Brasília, em 19 de abril. Mas, desde antes disso, o presidente da República já vinha namorando às escondidas com a “velha política”. O casamento finalmente saiu, de papel passado – no caso, o papel do Diário Oficial, que já registrou os primeiros cargos entregues por Bolsonaro aos partidos do Centrão.

O Diário Oficial de quarta-feira trouxe a nomeação de Fernando Marcondes de Araújo Leão para o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), uma autarquia com R$ 1 bilhão de orçamento para gastar em obras que rendem altíssimos dividendos eleitorais no Nordeste. Bolsonaro entregou a chave do Dnocs ao deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), que “terceirizou” a escolha para o colega Sebastião Oliveira (PL-PE), responsável por indicar Araújo Leão – Lira só deixou que outro partido ficasse com o cargo porque ele mesmo está em busca de apoio para se tornar presidente da Câmara em 2021.

Na quinta-feira, mais uma nomeação no Diário Oficial ligada ao Centrão: Tiago Pontes Queiroz se tornou secretário nacional de Mobilidade no Ministério do Desenvolvimento Regional, cujo titular é Rogério Marinho. O padrinho, desta vez, foi o deputado Sílvio Costa Filho (Republicanos-PE). E a lista de cargos que os partidos do Centrão ambicionam não para por aí, incluindo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Banco do Nordeste, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), secretarias em ministérios importantes, como o da Saúde, e o que mais houver pela frente do segundo escalão para baixo – o comando dos ministérios e de estatais importantes segue blindado (por enquanto). O ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem resistido à investida do Progressistas (o antigo PP) sobre o FNDE, criando um impasse que pode até mesmo lhe custar o cargo.

A democracia se aprimora no choque entre diferentes plataformas e na discussão que faz andar o processo legislativo. Nem todo interesse é espúrio, muito pelo contrário

Quando se elegeu presidente da República, Bolsonaro quis contornar os partidos, especialmente os do Centrão, de duas formas. Primeiro, montou um ministério praticamente sem indicações partidárias – mesmo os ministros ligados a partidos eram escolhas pessoais de Bolsonaro ou indicações de pessoas em quem o presidente confiava. Além disso, no Legislativo, tentou construir uma base aliada em torno das bancadas temáticas, como a do agronegócio e a da segurança pública, bastante numerosas e que deveriam lhe garantir apoio suficiente para aprovar a maioria dos projetos, contando ainda com outros partidos que não queriam se associar a Bolsonaro, mas apoiavam pautas como as reformas macroeconômicas.

O que, então, deu errado? A tramitação da reforma da Previdência evidenciou as dificuldades do Planalto em conseguir uma aprovação tranquila. Gostemos ou não, o sistema parlamentar brasileiro dá força aos partidos (e, num efeito colateral indesejado, a caciques partidários). Mas Bolsonaro e os bolsonaristas recusavam qualquer tipo de conversa. Quando eram alertados de que faltava articulação no Congresso, respondiam que “articulação” era mero código para troca de cargos por apoio, e que negociar era ceder ao toma-lá-dá-cá.

Isso é uma compreensão muito incompleta da democracia, que se aprimora no choque entre diferentes plataformas e na discussão que faz andar o processo legislativo. Nem todo interesse é espúrio, muito pelo contrário – as próprias bancadas temáticas nas quais Bolsonaro buscou apoio no início do mandato são grupos reunidos em tornos de um interesse comum. Pode haver, e há, interesses que consideramos equivocados, como o corporativismo e o protecionismo, sem falar de muitas das chamadas “políticas identitárias”. Mas não se pode equipará-los à mera fome por poder e à troca de cargos por apoio e blindagem política.

Em 2019, o Congresso que tomou posse estava profundamente renovado, oferecendo a Bolsonaro uma oportunidade ímpar. Muitos congressistas, veteranos e novatos, de vários partidos, estavam realmente dispostos a fazer a engrenagem do país funcionar em novas bases, de responsabilidade fiscal, respeito ao empreendedor, adesão aos valores morais que caracterizam o brasileiro. Mesmo excluídos os corruptos, os claramente fisiológicos e aqueles com quem as desavenças ideológicas são irreconciliáveis, Bolsonaro poderia conquistar amplo apoio para suas pautas caso tivesse se disposto a expor suas propostas ao mesmo tempo em que ouvia as demandas deste grupo, montando alianças em torno de pautas comuns, cedendo onde poderia haver concessões, trabalhando com base em programas em vez da troca de cargos. É assim que, como defende o cientista político Giovanni Sartori, se constroem resultados ainda melhores que as propostas iniciais. Em vez disso, o bolsonarismo partiu para a “soma zero”: para o governo ganhar, todos os demais teriam de perder. O resultado foram pontes queimadas prematuramente, a ponto de Bolsonaro ter rachado ao meio até a bancada de seu antigo partido, o PSL. No fim, ficou apenas com algumas poucas dezenas de parlamentares fiéis.

Chega a ser inexplicável que o bolsonarismo, então, continue rechaçando a possibilidade de uma negociação centrada em princípios e pautas, e em vez disso embarque em tentativas de justificar a mera troca de cargos por apoio com o Centrão. É o caso da deputada Bia Kicis (PSL-DF), que disse à Folha de S.Paulo que “a indicação não é um problema, o que importa é o que essa pessoa vai fazer com o cargo”, acrescentando que “a gente sempre combateu o Centrão porque tem pessoas aí que têm problemas com a Justiça (...) agora, o presidente está em um momento delicadíssimo e ele precisa de apoio”. A questão é que Bolsonaro está buscando justamente as “pessoas que têm problemas com a Justiça”.

Parafraseando Churchill, Bolsonaro escolheu primeiro a guerra, ao recusar até mesmo uma negociação honesta com o Congresso para emplacar suas pautas; mas ainda pode evitar a desonra

Arthur Lira, a quem foi entregue o Dnocs, é réu no STF por corrupção passiva e na primeira instância por improbidade administrativa, sempre em desdobramentos da Lava Jato. Oliveira, que fez a indicação para o Dnocs, foi alvo de operação da Polícia Federal nesta sexta-feira por suspeita de envolvimento em esquemas de corrupção quando ele era secretário de Transportes de Pernambuco. Tiago Queiroz, nomeado para a Secretaria de Mobilidade, foi denunciado pelo Ministério Público por irregularidades em contratos do Ministério da Saúde, no qual ele já trabalhou. Sem falar no mensaleiro condenado Valdemar Costa Neto, cacique do PL, a quem Bolsonaro pretende entregar a Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde.

O Centrão – que, bem se sabe, é capaz, quando quer, de criar dificuldades para vender facilidades – sempre aparece como a opção mais simples para garantir a tão citada “governabilidade”, mas não é a única. Mesmo com todos os atritos e inimizades que a postura belicosa do governo criou em relação ao Congresso, continua havendo gente muito bem-intencionada no parlamento com quem as boas pautas poderiam ser articuladas – até porque os próprios representantes do Centrão admitem, por exemplo, que a aliança com Bolsonaro não fará andar a pauta moral, uma das bases do apoio popular ao presidente.

A questão é: Bolsonaro estaria disposto a trilhar o caminho mais árduo, tentando reconquistar a simpatia de parlamentares e partidos que, apesar de terem pautas em comum com o governo, ele antagonizou desde que começou a perceber que sua vontade não bastava para aprovar projetos? Ou insistirá nessa aproximação com o Centrão? Se escolher o caminho da troca de cargos por apoio, será inevitável recordar as palavras de um ícone conservador, Winston Churchill. Às vésperas da Conferência de Munique, em que Hitler faria demandas territoriais para evitar um conflito armado, Churchill escrevera a um amigo afirmando que a Inglaterra estava prestes a ter de escolher entre a guerra e a desonra; provavelmente escolheria a segunda, e também teria a primeira mais cedo ou mais tarde. Pois Bolsonaro inverteu a sequência: escolheu primeiro a guerra, ao recusar até mesmo uma negociação honesta com o Congresso para emplacar suas pautas; mas ainda pode evitar a desonra de se aliar de forma tão escancarada àquela “velha política” que vive criticando em público.

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