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Editorial

Bolsonaro e as plataformas que o levaram à vitória

Jair Bolsonaro em sua posse, em 1.º de janeiro de 2019: tripé programático que convenceu o eleitor está sendo gradativamente abandonado pelo presidente. (Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasi)

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A receita que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República em 2018 foi muito além da mera repulsa pela roubalheira petista que havia marcado o período entre 2003 e 2016. Dos muitos candidatos que se apresentaram ao país dois anos atrás, Bolsonaro foi o único, entre os que tinham viabilidade eleitoral, a apresentar um pacote que compreendia liberalismo econômico, com defesa de reformas estruturantes; discurso forte de combate à corrupção e à criminalidade; e a defesa de valores morais caros à maioria dos brasileiros. Ainda que cada eleitor dê peso diferente a cada um desses temas, a combinação mostrou-se vencedora no primeiro e no segundo turnos. No entanto, aos poucos, o presidente vem se desfazendo desse tripé e buscando outros tipos de apoio, seja para governar, seja para conquistar uma eventual reeleição em 2022.

O primeiro pilar a ruir foi o do combate à corrupção, especialmente quando se trata da Operação Lava Jato. Vitorioso nas urnas, Bolsonaro convidou o então juiz federal Sergio Moro para ser seu ministro da Justiça e Segurança Pública, e os resultados, especialmente no campo da criminalidade, começaram a aparecer, com redução nos índices de violência urbana. Mas, quanto ao combate à corrupção, Bolsonaro foi, aos poucos, demonstrando pouco compromisso com as mudanças que o brasileiro esperava. Nomeou para a Procuradoria-Geral da República (PGR) um crítico da Lava Jato, Augusto Aras, quando seus ataques à operação, na linha dos supostos “excessos” da operação, já eram conhecidos. E não ouviu as sugestões de seu ministro da Justiça na hora de vetar trechos problemáticos da Lei de Abuso de Autoridade e do pacote anticrime que havia sido sugerido por Moro, mas desfigurado no Congresso, misturado a outras propostas vindas do Supremo Tribunal Federal.

Aos poucos, o presidente vem se desfazendo do tripé programático que o elegeu e está buscando outros tipos de apoio

Por fim, vieram todas as tentativas, da parte de Bolsonaro, de ter maior controle na Polícia Federal, desencadeando uma sequência de acontecimentos que culminaria no pedido de demissão de Moro, após a publicação, na calada da noite, da demissão do então diretor-geral da PF, Maurício Valeixo. Mesmo meses depois do episódio, ainda são poucos os que o julgam de forma correta, continuando a enxergar nele o que desejariam ver – sejam crimes presidenciais dignos de impeachment, sejam traições de um ministro vaidoso –, não o que realmente aconteceu. Da parte de Bolsonaro, o famoso vídeo da reunião ministerial de 22 de abril mostrou um presidente insatisfeito com o trabalho da corporação em questões ligadas à sua família, e que promete fazer alterações no comando – prerrogativa que a lei lhe confere. Quanto a Moro, tratava-se de preservar a independência da Polícia Federal; quando essa autonomia foi violada, com a substituição do diretor-geral por razões que Moro considerava inadequadas, o ministro não se viu mais em condições de permanecer no governo.

A perna da economia parecia estar em melhores condições, pelo menos até que a pandemia do coronavírus irrompesse, lançando no caos o mundo todo. A reforma da Previdência havia sido aprovada em 2019; no mesmo ano Bolsonaro publicara a MP da Liberdade Econômica, depois convertida em lei e que é um legado bastante positivo. Se as privatizações não andavam no ritmo esperado, as concessões de infraestrutura atraíam players importantes. O governo perdera tempo com as reformas tributária e administrativa, mas não as havia tirado do radar. E, se o PIB de 2019 não tinha sido tão animador, o começo de 2020 dava sinais melhores.

A pandemia, com suas consequências econômicas, fez sair da jaula o fantasma do descontrole fiscal – não pelos gastos de 2020, extraordinários e necessários para atenuar a catástrofe, mas pelas perspectivas para o ajuste fiscal brasileiro. A ala dita “desenvolvimentista” ganha força com sua defesa do gasto público, enquanto Paulo Guedes e sua equipe se veem desautorizados em vários momentos. Bolsonaro fala e tuíta em defesa do teto de gastos, mas apoia um formato de financiamento para seu novo programa social que burla o ajuste, criando mais despesas sem fazer os cortes correspondentes.

Resta, por fim, a pauta moral. Se ela não caminhou no Congresso graças à obstinação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), havia outros meios pelos quais o Poder Executivo podia fazer valer os valores conservadores da maioria dos brasileiros, mas apenas a pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandada pela ministra Damares Alves, parece ser a única a trabalhar com mais afinco. Só muito recentemente o Ministério da Saúde passou a se empenhar contra o abortismo que marcou gestões anteriores. O Ministério da Educação pouco fez, perdido nas “mitagens” de ocupantes da pasta, para atacar a questão da doutrinação nas escolas.

E uma grande (se não a maior) esperança dos conservadores quanto ao governo Bolsonaro se viu frustrada no início de outubro, quando Bolsonaro escolheu, para a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal, o desembargador Kassio Nunes Marques. Nada de um jurista explicitamente comprometido com a defesa da vida e da família, que rejeitasse o ativismo judicial, que fosse rigoroso com os corruptos; em vez disso, um indicado do Centrão – grupo político ao qual Bolsonaro se abraçou de vez –, apadrinhado por um senador denunciado pela Lava Jato ao STF. Para muitos apoiadores do presidente que o defenderam em todas as outras controvérsias, da demissão de Moro à maneira de lidar com a Covid-19, esta foi a gota d’água.

O país deve se satisfazer apenas com o fato de não ter se transformado em uma Venezuela ou, mais provavelmente, uma Argentina?

Bolsonaro consegue, assim, dar as costas aos três grupos que o ajudaram a se eleger, preferindo a companhia dos políticos do Centrão e um novo nicho eleitoral que, para ser mantido, exigirá gastos cada vez maiores. Parece loucura, mas há método: o presidente acredita que os decepcionados de hoje o apoiarão nas urnas em 2022 por pura falta de opção, dada a carência de bons líderes que encarnem os mesmos valores que Bolsonaro representou em 2018, especialmente se houver nova possibilidade de o Brasil voltar a ter um governo de esquerda. Tendo garantidos esses votos, os “novos amigos” fecharão a conta da reeleição.

Sim, a ascensão de Bolsonaro representou a interrupção de um processo de guinada do Brasil em direção ao socialismo, seja na versão “suave” em alguns aspectos, seja na versão “dura” em outros. Mas o país deve se satisfazer com o fato de não ter se transformado em uma Venezuela ou, mais provavelmente, uma Argentina? Com ou sem pandemia, muitas boas oportunidades estão sendo desperdiçadas, e alguns erros terão consequências por décadas, como no caso da nomeação para o STF. Parar de regredir é importante, mas ainda é pouco quando se sabe que havia chance de voltar a avançar. E, por esse critério, a primeira metade do mandato de Bolsonaro termina muito aquém da expectativa.

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