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A nomeação de Ciro Nogueira (PP-PI) para a Casa Civil da Presidência da República marca um clímax nesse movimento progressivo de aproximação entre o governo Bolsonaro e o chamado “centrão”. O movimento foi defendido pessoalmente pelo Presidente, tendo como motivação a necessidade, segundo ele mesmo, de governabilidade, para garantir a aprovação de reformas e outras pautas importantes para o país.
Desde as costuras para a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a Presidência da Câmara, o governo tem abandonado sua retórica inflamada de renegar a “velha política”, o “toma lá dá cá” e outras práticas que infelizmente vem marcando a atuação do Executivo nacional desde a promulgação da Carta d 1988. Esse tipo de sistema político, em que um Poder eleito pelo voto majoritário é forçado a negociar super maiorias parlamentares com uma maçaroca indistinta de mais de 30 partidos sem identidade ideológica ou coerência programática tem sido definido pela Ciência Política nacional como “presidencialismo de coalizão”.
A escolha por essa via de ação se deu depois de quase dois anos de conturbada relação com o Congresso Nacional. Bolsonaro parece ter vacilado entre a ameaça de uma agenda plebiscitária, inflamando seus apoiadores para manifestações de apoio ao Presidente, e longos momentos de “jogo parado”, em que o Presidente era sucessivamente derrotado no Parlamento sem que isso desencadeasse um processo de aproximação entre os Poderes. Somente após o avanço da pandemia e a consequente perda da popularidade as relações entre Executivo e Legislativo parecem ter se aproximado de um nível de interlocução minimamente razoável.
É certo que optar por usar da repartição do erário com partidos fisiológicos não é o único jeito de governar no atual arranjo institucional. Com um pouco mais de habilidade, o Presidente poderia ter apresentado sua agenda de governo publicamente para a sociedade e para o Parlamento, criando espaços de negociação e debate para que consensos mínimos pudessem ser alcançados. A publicização e a transparência na apresentação e no debate das propostas submeteria o trabalho dos parlamentares ao escrutínio do eleitorado. Mesmo em meio ao chamado “centrão”, há representantes legítimos de grupos de pressão e políticos com boa vontade, que não se furtariam à construção coletiva de alternativas em prol do bem comum. Agendas com alcance mais limitado certamente ficariam travadas nesse processo, mas não necessariamente as reformas mais importantes para o futuro do país.
Fez-se uma escolha, portanto. Não é a melhor, mas não se pode dizer que essa escolha não seja em alguma medida minimamente legítima ou tolerável, desde que a formação de super maiorias parlamentares não envolva esquemas de corrupção como os ocorridos no Petrolão ou no Mensalão. Por isso, é importante que o Poder Executivo não deixe de lado definitivamente o compromisso com o combate à corrupção que foi um dos motes das promessas de campanha de 2018. Desde as Jornadas de Junho de 2013, nenhum governante brasileiro pode se dar ao luxo de ignorar o clamor popular em prol da construção de uma democracia mais transparente, com mais rigor nos gastos públicos e eficiência do Estado. As massas não têm dono e a insatisfação contra a “velha política”, com todos os seus riscos e possibilidades, permanece latente numa sociedade que pode se ver livre muito em breve das ameaças do contágio e das exigências de distanciamento social.
Mas mais importante do que isso, o fato é que, uma vez que o governo capitulou, por assim dizer, e cedeu aos imperativos da governabilidade nos moldes dos últimos mandatos presidenciais, há algo, no entanto, que não se pode tolerar: é que não se anuncie em bom tom e de maneira clara em vista de que objetivos concretos ocorreu esse movimento. Não pode tratar-se apenas de uma estratégia de permanência no poder, embora tudo aponte nesse sentido. Essa concessão em prol da governabilidade precisa significar algum ganho para um país carente de boas notícias. O Brasil enfrenta desemprego elevado, crescimento da inflação, grande endividamento das famílias e uma pandemia que significou não somente a morte de mais de 500 mil pessoas, como a desestruturação da vida econômica e familiar de milhões de outras. Já que o presente esforço de acomodação se deu em prol da “governabilidade”, o Presidente precisa apresentar com convicção, clareza e razoabilidade uma agenda positiva que mostre para a sociedade em prol do quê ela vem: que reformas se pretende aprovar, que medidas concretas e que plano de ação robusto se quer ver validado pelo Legislativo.
A recuperação acelerada da economia e o boom das commodities apresentam as condições e a oportunidade para uma atuação corajosa e convergente entre os poderes que possa iniciar uma transformação sustentável do país. Bolsonaro precisa demonstrar que as concessões não irão se restringir a gerar benefícios para “caciques” do Congresso, mas também para todos os brasileiros e, sobretudo, para aquelas pessoas que mais precisam, num dos momentos mais delicados da história nacional. Não é só seu futuro político ou a vida de milhões de brasileiros que dependem disso, mas a própria estabilidade democrática, que é condição do nosso progresso enquanto nação.