Nesta terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro chega à Rússia para uma visita esperada “com impaciência” pelo Kremlin. Há motivos para a ansiedade dos anfitriões, já que o regime de Vladimir Putin, cada vez mais isolado no mundo livre após todas as recentes movimentações de tropas na fronteira com a Ucrânia que apontam para uma invasão iminente, está desesperado pelo endosso de ao menos algum líder de nação democrática, já que até o momento os principais apoiadores de Putin também são autocratas como ele. Este endosso, evidentemente, não precisa vir na forma de um apoio explícito – o silêncio já basta, e é aqui que Bolsonaro pode ser muito conveniente para Putin.
O momento atual é, talvez, o de maior tensão internacional desde o fim da Guerra Fria. Nos últimos 30 anos, o mundo viu uma boa dose de ações militares, muitas delas com respaldo internacional, seja de combate ao terrorismo, ou para a proteção de países e grupos vítimas de agressões. Mas o que ocorre na Ucrânia é de natureza totalmente diferente; é a repetição de algo que parecia superado. Uma superpotência nuclear está recorrendo explicitamente ao uso da força armada contra outra nação soberana por razões puramente imperialistas, já que Putin, ansioso por reconstruir a glória soviética, não aceita que os países vizinhos prefiram uma parceria com a Otan. O autocrata já agrediu a Ucrânia anteriormente, invadindo e anexando a península da Crimeia, em um ato que acabou tolerado pela comunidade internacional, pródiga em reclamações, mas econômica em ações. Desta vez, as potências ocidentais elevaram a voz de forma preventiva, embora ainda não seja claro que tipo de sanções os Estados Unidos e a Europa estariam dispostos a aplicar à Rússia – especialmente se isso representar risco de desabastecimento de gás e petróleo em pleno inverno europeu.
Por mais que a viagem tivesse sido marcada antes do acirramento das tensões, um adiamento seria completamente compreensível; mais que isso, seria a única opção moralmente aceitável nas circunstâncias atuais
Mas Bolsonaro não está viajando à Rússia para costurar uma distensão. Seus objetivos são, prioritariamente, comerciais. “Temos negócios comerciais com eles. Em grande parte nosso agronegócio depende dos fertilizantes deles. Temos assuntos para tratar sobre defesa, né? Sobre energia, muita coisa para tratar”, afirmou ele a apoiadores nesta segunda-feira, diante do Palácio do Planalto. A crise na Ucrânia, que é de longe tema muito mais importante, mereceu apenas considerações genéricas da parte do presidente. “Sabemos do momento difícil que existe naquela região (...) Vamos torcer pela paz lá, que dê tudo certo (...) A gente quer a paz, mas você tem que entender que todo mundo é ser humano. Vamos torcer para que dê certo. Se depender de uma palavra minha, o mundo teria paz”, afirmou, sem explicar o que significa a ressalva sobre todos serem humanos.
Que um país busque defender seus interesses comerciais e ampliar parcerias é perfeitamente natural. Mas, neste exato momento, só existe uma única justificativa para que autoridades de qualquer país – especialmente chefes de Estado – viajem à Rússia: convencer Putin a interromper suas ameaças à Ucrânia. É exatamente o que está fazendo o novo chanceler alemão, Olaf Scholz, que nesta semana visita tanto Kiev quanto Moscou. Qualquer outro objetivo deve ser colocado em segundo plano, e certamente não justifica visitas, entrevistas coletivas conjuntas, fotos de apertos de mãos e demais salamaleques típicos de encontros entre governantes que possam ser vistos como sinal de endosso ou tolerância com as ações de algum ou de ambos os interlocutores. Por mais que a viagem tivesse sido marcada antes do acirramento das tensões, um adiamento seria completamente compreensível; mais que isso, seria a única opção moralmente aceitável nas circunstâncias atuais, inclusive como demonstração de que, para o governo brasileiro, qualquer outro interesse está subordinado ao retorno imediato da paz – e paz duradoura, não a perpetuação da incerteza causada pelo acúmulo de tropas na região. Hoje, Bolsonaro só tem a perder, e Putin – que, aliás, é hoje um dos grandes fiadores internacionais da ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela – só tem a ganhar com a visita.
Não há neutralidade possível quando um país assume claramente o papel de agressor, como a Rússia faz hoje e já fez em ocasiões anteriores envolvendo a Ucrânia. O silêncio, neste caso, é cumplicidade conveniente – e é este o papel que Bolsonaro está prestes a cumprir, já que não se espera dele nenhuma declaração contundente em defesa da integridade territorial ucraniana e do direito soberano dos ucranianos a fazer alianças com quem desejarem, ou uma crítica às movimentações russas; no máximo, teremos menções genéricas a “paz”, que cada um entenderá a seu modo. Insistir em visitar Putin no pior momento possível para tratar de assuntos que nada têm a ver com a crise na Ucrânia não é neutralidade, mas uma demonstração de alienação inaceitável para o chefe de uma nação como o Brasil.