A disputa entre o presidente Jair Bolsonaro e o Poder Judiciário – mais especificamente, o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal – ganhou novas dimensões extremamente preocupantes nos últimos dias. Após mais uma das lives semanais do presidente da República, em que ele retomou o tema do voto impresso auditável e de supostas fraudes em eleições anteriores, os ministros do TSE, reunidos na segunda-feira, dia 2, abriram inquérito administrativo contra Bolsonaro e enviaram notícia-crime ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, solicitando que o presidente seja incluído entre os alvos do inquérito das fake news – Moraes também é membro da corte eleitoral, que é presidida por Luís Roberto Barroso, também ministro do Supremo.
A proposta de inquérito administrativo no TSE partiu do corregedor-geral da corte, Luís Felipe Salomão, e investigará suposta prática de abuso de poder político e econômico, uso indevido de meios de comunicação social, corrupção, fraude e propaganda eleitoral antecipada. Já o pedido enviado a Moraes – e por ele aceito na quarta-feira, dia 4 – se limita a mencionar “possível conduta criminosa” da parte do presidente, mas, na decisão em que acata o pedido da corte eleitoral, Moraes afirma que o comportamento do presidente poderia configurar crimes de calúnia, difamação, injúria, incitação ao crime, apologia ao crime ou criminoso, associação criminosa, denunciação caluniosa, além de crimes eleitorais e contra a segurança nacional.
A menção à não realização de eleições é algo tão grave que não se deveria tolerar nem mesmo como bravata, muito menos como ameaça real
O inquérito das fake news, como já afirmamos muitas vezes neste espaço, é uma aberração jurídica criada pelo próprio Supremo, sem provocação do Ministério Público, sem objeto definido, no qual foi sendo incluído todo tipo de crítica ao STF e que já levou a uma série de arbitrariedades, como censura a veículos de comunicação e a prisão de um deputado, em escancarada violação à norma constitucional. Em princípio, nem haveria razão para incluir nele as críticas de Bolsonaro à votação eletrônica; o nexo encontrado por Moraes foi a afirmação de que “quem tirou o Lula da cadeia e quem o tornou elegível [no caso, os ministros do STF] é quem vai contar os votos lá no TSE na sala escura” – os três ministros do Supremo que também integram o TSE (Barroso, Moraes e Edson Fachin) votaram pela anulação dos processos de Lula em Curitiba, mas apenas Moraes foi favorável à declaração de suspeição do ex-juiz federal Sergio Moro, com Fachin e Barroso sendo contrários.
Também é extremamente inconveniente a atuação dos ministros do STF e do TSE, especialmente Barroso, nas articulações pela derrubada da PEC do voto impresso, que tramita no Congresso Nacional, bem como as repetidas declarações dos magistrados sobre o tema, na prática antecipando um possível voto caso tenham de julgar o tema no futuro. Ainda que prometa acatar a decisão do Congresso caso o Legislativo aprove o voto impresso, Barroso não perde uma chance de criticar a proposta, portando-se como agente político quando deveria manter a neutralidade que se espera de um juiz.
Mas, se os ministros acabam fazendo sua parte para exacerbar tensões, muito mais o faz o presidente da República. Em vez de simplesmente defender com argumentos a ideia do voto impresso auditável e mobilizar sua base aliada no Congresso para aprovar a PEC, Bolsonaro lançou-se em uma perigosa campanha com o objetivo de colocar em absoluto descrédito o sistema eleitoral brasileiro, erodindo a confiança popular em um dos pilares da democracia representativa. O presidente repete incessantemente as acusações de fraude eleitoral em 2018 – quando, afirma, ele teria vencido já no primeiro, e não no segundo turno –, mas não é capaz de oferecer as provas do que diz, o que ele mesmo admitiu na live de quinta-feira passada, quando disse que “não temos provas, vou deixar bem claro, mas indícios”, que consistiam na repetição de acusações já respondidas pelo TSE em ocasiões anteriores e na menção a um inquérito da Polícia Federal sobre uma invasão hacker ao sistema do TSE. Para completar, Bolsonaro ainda inverteu o ônus da prova, pedindo a seus detratores que provassem a inviolabilidade do sistema, quando na verdade é quem acusa que deve trazer as evidências.
Como se não bastasse, Bolsonaro tem continuado a insinuar a possibilidade de não haver eleições em 2022 se elas não forem “limpas” – e, neste caso, quem definiria a lisura do processo seria o próprio presidente da República, a depender de haver o voto impresso auditável ou não. Mesmo que se queira colocar essa afirmação na conta do “estilo” de Bolsonaro, a menção à não realização de eleições é algo tão grave que não se deveria tolerar nem mesmo como bravata, muito menos como ameaça real – como já afirmamos, se um presidente de esquerda trabalhasse para bloquear a realização de eleições, a sociedade se levantaria com toda a razão e teria todos os motivos para apear tal mandatário do poder, dado o explícito crime de responsabilidade cometido.
E, mais recentemente, o presidente deu um passo adicional ao admitir que pode ignorar a Constituição em uma retaliação contra ministros do Supremo. “[O inquérito das fake news] Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição”, afirmou na quarta-feira à rádio Jovem Pan. Nesta quinta-feira, ele voltou ao tema: “A hora dele [Moraes] vai chegar porque está jogando fora das quatro linhas da Constituição há muito tempo. Eu não pretendo sair das quatro linhas para questionar essas autoridades. Mas acredito que esse momento está chegando”. Mesmo abrandando um pouco a afirmação do dia anterior, o presidente segue admitindo publicamente a possibilidade de violar a Constituição, ainda que para se defender de algo percebido como um abuso. É algo de extrema gravidade, a promessa do “vale tudo” antidemocrático. A Constituição – que o presidente da República jura manter, defender e cumprir – é marco do qual jamais podemos nos afastar, e prevê, sim, soluções institucionais para impasses entre poderes, que exigem senso de responsabilidade daqueles encarregados de perceber os reais abusos e aplicar os remédios legais.
Executivo e Judiciário, cada um a seu modo, cada um com intensidade diferente, seguem esticando a corda, mas não há dúvidas de que a responsabilidade maior cabe ao presidente da República
Em vez de um debate honesto sobre como aperfeiçoar o modelo atual, temos, de um lado, uma corte eleitoral que demonstra horror à discussão, limitando-se a afirmar a segurança do sistema usado hoje; e, de outro lado, um presidente que se empenha em semear a desconfiança do eleitor – e a retórica vem funcionando, pois, em recente pesquisa CNT/MDA, 18,9% dos entrevistados disseram não confiar na urna eletrônica, e outros 15,8% disseram ter “confiança baixa”. E a baixa confiança da população nos instrumentos democráticos deixa a porta aberta para aventuras autoritárias e soluções de força que deveriam permanecer no passado.
Executivo e Judiciário, cada um a seu modo, cada um com intensidade diferente, seguem esticando a corda, mas não há dúvidas de que a responsabilidade maior cabe ao presidente da República, que acusa sem provar, demonstra pouca disposição em seguir as regras eleitorais caso elas não lhe agradem e já admite explicitamente a possibilidade de agir ao arrepio da Constituição. Nenhuma ruptura institucional se dá subitamente: elas sempre são precedidas por uma escalada de hostilidades e provocações, em muito semelhantes às escaramuças destes dias entre Bolsonaro, Barroso e Moraes. Ainda há tempo de evitar o ponto a partir do qual não há mais retorno, mas parece haver poucos bombeiros em Brasília neste momento. Nada de bom pode vir dessa disputa na qual, vença quem vencer, os perdedores serão a democracia e a sociedade brasileira.
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