Declarar que se leva uma vida feliz virou praticamente uma obrigação. Assim, corre-se o risco de transformar em mercadoria uma das discussões mais sólidas da filosofia

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A felicidade está na moda, tanto quanto o esmalte vermelho, as maxibolsas e os bigodes. Muitos diriam que sempre esteve. O tema já constava nas lições de Confúcio – a quem se atribui a receita quase caseira de jamais fazer ao outro o que não gostaríamos que nos fizessem. Filósofos como Platão e Aristóteles desenvolveram variações para o tema, tratando-o pelo prisma da virtude: só os justos desfrutam da verdadeira felicidade.

O cristianismo, à sua maneira, deixou uma bula de regozijo: listou obras de misericórdia, bem-aventuranças e ditou o amor ao próximo como vereda segura para a felicidade eterna, única que vale uma vida. O mesmo cristianismo se encarregou de creditar à felicidade uma boa dose de desconfiança, já que por si só poderia ser sintoma de insensibilidade diante da dor do outro. Em suma, o homem pode encontrar na felicidade um amigo enganoso – para emprestar a expressão do pensador britânico Rudyard Kipling

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As esquerdas se encarregaram de reforçar o descrédito à felicidade, tachando-a de sentimento pequeno-burguês, um bálsamo dos alienados. Enquanto houver uma criança passando fome no mundo, ninguém pode ser feliz, vociferaram os inconformados. Simone de Beauvoir, por exemplo, via o estar feliz como um inimigo do estar livre. E aconselhava que, de olhos fechados, fosse escolhida a segunda opção.

À revelia do alerta dado pelos ascetas e estóicos, feministas e políticos, a felicidade vingou e virou um fruto da estação. Tornou-se um assunto emergente, capaz de mobilizar multidões e ocupar a mente dos estudiosos. Há pelo menos uma década, pesquisas mundiais insistem em criar uma espécie de IDH da felicidade, surpreendendo a cada novo levantamento com a afirmação contínua de que os moradores de países miseráveis podem estar mais felizes do que os de prósperas nações do Primeiro Mundo.

Já havia se avisado, a torto e a direito, que dinheiro não traz felicidade. De uns tempos para cá, contudo, o senso comum virou estatística. Há mesmo uma máquina pensante trabalhando em prol da felicidade. O World Data Base of Happiness fornece os dados necessários para colocar o assunto na ordem do dia, dando-lhe status de preço do petróleo. Em paralelo, centros de pesquisas regionais também fazem suas próprias aferições, colocando, volta e meia, a felicidade no centro do noticiário. Há dois anos, o Datafolha entrevistou 7.724 brasileiros de 349 municípios e cravou o resultado que deve ter plantado sorrisos por aí: 76% dos brasileiros se disseram felizes, 11% a mais do que a pesquisa anterior, feita em 1996. Em uma década, a contar pelo levantamento, a felicidade raiou no horizonte do Brasil. E assim permanece. Domingo passado, a Gazeta do Povo publicou estudo do Paraná Pesquisas com 465 curitibanos: 83% se declararam felizes, confirmando a proeza.

A febre é tamanha que já desembarcou no círculo universitário e faz a festa do mercado editorial – não propriamente o da auto-ajuda, para o qual o importante é ser feliz e mais nada. Em Harvard, o curso de Filosofia Positiva – título acadêmico de felicidade – é dos mais procurados. Além de bibliografia farta, o tema já fez seus mestres, do psicólogo Jonathan Haidt, da Universidade de Virgínia, a Richard Layard, profeta da "nova ciência da felicidade". Eles são lidos como um dia foram Marcuse ou Foucault.

É assunto sério. Se a felicidade puder de fato de ser medida, como querem Haidt, Layard e outros pensadores da era happy, nada mais será como antes. Fica provado que é possível promover políticas para a felicidade, como se faz com educação ou segurança alimentar. Há caminhos para tanto, como a prática dos valores humanos e estímulos ao bem-estar. Os felizes, diz-se, mobilizam a parte frontal esquerda do cérebro, efeito que o lazer e a sociabilidade podem garantir a um número cada vez maior de pessoas.

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A facilidade com que as peças se encaixam no jogo da felicidade, no entanto, pode fazer com que as pessoas se comportem como algum figurante de um filme de Frank Capra – a exemplo de Do mundo nada se leva (1938) ou A felicidade não se compra (1946). Há um perigo flagrante – mesmo com o aval da Universidade de Harvard – de transformar o debate em mais uma cilada da sociedade de consumo. Parodiando Capra: felicidade não se encontra à venda numa gôndola. Mas isso está prestes a acontecer.

A não ser que se leve em conta alguns senões. A eles: os resultados das pesquisas sobre felicidade indicam que poucos se autodeclarariam infelizes. Seria trair o espírito do tempo em que se dizer feliz se tornou um pré-requisito para ser aceito num emprego, por exemplo, ou para permanecer em algumas igrejas. A melancolia ficou perdida nas páginas da literatura do século 18; e a fossa foi afogada em algum copo de bar ao som de Maysa ou Lupicínio Rodrigues.

A tristeza não é bem-vinda no século em que a ordem é se dizer contente. É ponto para a felicidade. Ela se safou das patrulhas ideológicas da década de 60 e hoje pode ser declarada, em alto e bom som. É possível até discuti-la na universidade. E comprar livros sobre ela, como o indescritível Felicidade, de Eduardo Gianetti da Fonseca. Mas vai ser uma perda se o contentamento tiver o tamanho de uma cápsula ou for pesado como um dever de casa. E pior ainda se a tristeza for-se embora levando consigo a sabedoria e a poesia. Como dizia Guimarães Rosa: "Felicidade se acha é em horinhas de descuido."