No último minuto, o presidente Jair Bolsonaro e seu colega argentino Alberto Fernández adotaram posturas mais conciliadoras na posse do peronista, ocorrida na terça-feira, em Buenos Aires. Durante a campanha no país vizinho, Bolsonaro havia demonstrado abertamente sua preferência pela reeleição de Mauricio Macri, que acabou derrotado já no primeiro turno. Na comemoração da vitória, Fernández posou para fotos fazendo com as mãos o sinal de “Lula livre” – o petista, classificado de “preso político” pelo argentino, seria solto alguns dias depois, com a decisão do Supremo que derrubou a prisão após condenação em segunda instância. Bolsonaro não telefonou para parabenizar o vitorioso e afirmou, de imediato, que não iria à posse; até poucos dias antes do evento, cogitava-se o envio do ministro Osmar Terra como representante brasileiro. Na véspera da posse, o Planalto anunciou que apenas o embaixador brasileiro na Argentina, Sergio Danese, estaria presente. No fim, o escolhido foi o vice-presidente Hamilton Mourão, em um gesto que estendia a mão para Fernández.
A resposta veio no discurso de posse, em que o Brasil foi o único país citado nominalmente pelo novo presidente argentino. “Com a República Federativa do Brasil, particularmente, temos de construir uma agenda ambiciosa, inovadora e criativa, nos âmbitos tecnológico, produtivo e estratégico, respaldada pela irmandade histórica entre nossos povos e que está além de qualquer diferença pessoal entre governantes. Vamos honrá-la e avançar juntos na construção de um futuro de progresso compartilhado”, afirmou Fernández. No dia seguinte, Bolsonaro manteve o tom mais amistoso, afirmando torcer pelo sucesso da Argentina, e afirmou que Fernández está convidado para visitar o Brasil.
A pergunta que fica no ar é até que ponto Fernández está realmente disposto a transformar seu discurso em prática
De fato, o sucesso da Argentina é importante para o Brasil, pois a parceria comercial entre as duas nações é tão profunda que os solavancos em um país inevitavelmente afetam o outro; além disso, os dois países são os motores do Mercosul. A pergunta que fica no ar é até que ponto Fernández está realmente disposto a transformar seu discurso em prática – e se, estando disposto, será capaz de fazê-lo. Afinal, Cristina Kirchner certamente não fará papel decorativo; o cargo de vice-presidente também lhe garante a presidência do Senado argentino, e sua política econômica, nos oito anos em que ocupou a Casa Rosada, foi marcada por um protecionismo ferrenho que prejudicou o Brasil e o Mercosul. O grau de influência da vice sobre a economia argentina, e especialmente sobre a política comercial, será determinante para saber se teremos uma repetição das absurdas restrições à importação de anos atrás.
- A prisão mental do populismo argentino (editorial de 28 de outubro de 2019)
- O Mercosul e a incógnita argentina (editorial de 9 de dezembro de 2019)
- O possível retorno de Cristina Kirchner como coadjuvante (artigo de Christopher Mendonça, publicado em 20 de outubro de 2019)
- O estrangulamento da Argentina e o Brasil em compasso de espera (artigo de 24 de outubro de 2019)
Como o próprio Fernández ressaltou em seu discurso, ele assume a presidência da Argentina em um momento complicadíssimo para a economia do país. Os indicadores atuais estão piores que em 2015, quando Macri assumiu, mas convenientemente o novo presidente ocultou o fato de as raízes da crise econômica terem sido lançadas por sua companheira de chapa – o erro de Macri foi o de não atacar de frente as heranças malditas do populismo argentino, evitando as reformas urgentes, como a redução do tamanho do Estado. Em situações como estas, há nações que acabam cedendo ao pragmatismo, mesmo que a contragosto, como ocorreu com países europeus anos atrás, no auge da crise do euro; outras aprofundam as políticas populistas e se fecham ao mundo, como a Argentina nos anos de Cristina Kirchner.
As diferenças ideológicas entre Bolsonaro e Fernández continuarão existindo, obviamente, mas Brasil e Argentina só têm a ganhar se efetivamente trabalharem na “agenda ambiciosa, inovadora e criativa”. “São dois países que têm de se auxiliar mutuamente”, havia dito Mourão à imprensa argentina no dia da posse de Fernández. Em Brasília, a orientação é clara: fomentar o livre comércio e a inserção internacional do Mercosul. Que em Buenos Aires o novo governo seja capaz de reverter as tendências populistas e protecionistas.
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