Na última sexta-feira, dia 13, completaram-se duas semanas da decisão de Alexandre de Moraes que bloqueou a rede social X em todo o Brasil, com direito a imposição de multa para qualquer um que usasse VPNs para conseguir acessar o site ou aplicativo em território nacional. Naquele dia 30 de agosto, esta Gazeta do Povo afirmou que “os representantes do povo (...) não podem deixar que um fim de semana sequer transcorra sob a vigência desta aberração ominosa”. Pois não só duas semanas inteiras já se passaram, como o Judiciário ainda vem dobrando a aposta: o bloqueio do X foi referendado de forma unânime pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, e Moraes determinou o confisco de R$ 18 milhões, dos quais R$ 11 milhões pertencentes à Starlink, para pagar multas aplicadas ao X.
E tudo isso sem que houvesse um volume minimamente decente de manifestações veementes contra essa escalada autoritária, que destrói de uma vez só várias liberdades constitucionalmente garantidas – não apenas a liberdade de expressão, mas também a liberdade de imprensa e a liberdade econômica. Com raríssimas exceções, o que se vê da parte de políticos, entidades da sociedade civil organizada, formadores de opinião e veículos de imprensa é o silêncio ou a crítica tímida – seja nos termos escolhidos, seja na opção por mencionar apenas alguns aspectos (como o bloqueio das contas da Starlink, a multa por uso de VPNs ou o enorme embaraço ao trabalho jornalístico), deixando intacto o âmago da questão, que é a suspensão total de uma rede social em todo o país, alegando-se uma recusa ao cumprimento de ordens judiciais que eram ilícitas no seu nascedouro, já que profundamente inconstitucionais.
A vitória dos liberticidas só foi possível porque eles foram testando aos poucos a tolerância do brasileiro, recuando em alguns raríssimos casos para depois voltar a avançar
Os motivos pelos quais abusos tão gritantes são recebidos de forma tão indiferente, esses só podemos imaginar. Seria por medo de represálias de Moraes ou de outros ministros do STF? Seria por endosso a um hiperlegalismo que se limita a repetir que “decisão judicial se cumpre” sem nem mesmo analisar antes se tais decisões são legítimas ou têm amparo constitucional? Seria por ojeriza de cunho político-ideológico aos alvos de todas as decisões injustas que têm sido proferidas por Moraes e seus colegas na suprema corte? Seria por alguma crença na necessidade de abolir temporariamente as garantias constitucionais em uma “situação excepcionalíssima” (como diria Cármen Lúcia ao endossar uma censura prévia em 2022) abstrata, fora daquelas reais exceções inclusive previstas na Constituição? Ou, ainda, seria porque na verdade ninguém vê absolutamente nada de errado, ilegal ou inconstitucional em tudo o que vem ocorrendo?
Se qualquer uma (ou mais de uma) dessas hipóteses for verdadeira, infelizmente será preciso reconhecer que os liberticidas já venceram. Seja por terem feito a sociedade civil incorporar o medo e a autocensura, seja por terem anestesiado a consciência de todo um país a respeito da importância das liberdades, seja por terem consolidado a ideia de que, contra o “outro lado”, vale absolutamente tudo. Venceram pela omissão de quem até discorda, mas não ousa falar; e venceram pela adesão de quem pode até enxergar um ou outro problema, mas concorda com o “conjunto da obra” e até o aplaude, a ponto de exaltar a atuação do STF em uma suposta “defesa da democracia”.
- Ao banir o X, é Moraes quem trata o Brasil como terra sem lei (editorial de 30 de agosto de 2024)
- Proibição de VPNs para acessar X confirma a esbórnia judicial brasileira (editorial de 1.º de setembro de 2024)
- Um 9 a 1 contra o Brasil e contra a liberdade (editorial de 2 de setembro de 2024)
- A liberdade econômica também sofre com os desmandos do STF (editorial de 3 de setembro de 2024)
- A liberdade de imprensa, bloqueada com o X (editorial de 5 de setembro de 2024)
E a vitória dos liberticidas só foi possível porque eles foram testando aos poucos a tolerância do cidadão brasileiro e da sociedade civil, recuando em alguns raríssimos casos para depois voltar a avançar quando percebiam que a indignação era restrita. Foi assim que o Brasil normalizou a censura (apesar da reação inicial ao caso da Crusoé, ainda em 2019), e depois normalizou também a censura prévia. Normalizou a perseguição de cidadãos por conversas privadas sem crime algum. Normalizou o bloqueio indiscriminado de perfis em mídias sociais, contra a Constituição, em ordens secretas e sem justificativa. Normalizou prisões preventivas de longuíssima duração sem base legal alguma, e denúncias e condenações sem provas, em flagrante desrespeito ao devido processo legal e à ampla defesa. E, agora, normaliza o bloqueio de toda uma rede social, em violação total a uma série de garantias constitucionais, normalizando também a aberração jurídica da imposição de uma “obrigação de não fazer”, sem lei nenhuma que a preveja, a toda uma nação que não é parte do processo em cujo bojo a ordem foi proferida.
O STF tratou o Brasil inteiro como o proverbial sapo na fervura. Foi elevando a temperatura, enquanto o sapo respondia que estava tudo bem, que era necessário, que era “pela democracia”. Pois aqui chegamos, com nossas liberdades quase que totalmente cozinhadas, mais sufocadas que os pulmões de quem respira a fumaça das queimadas, como comparou no domingo o colunista da Gazeta Luís Ernesto Lacombe. E ainda assim há quem continue acreditando que não há problema algum, que as decisões abusivas são, no máximo, um “mal necessário”, que a democracia está preservada, que as instituições funcionam perfeitamente. Não falta muito para o sapo finalmente sucumbir; que ele comece logo a se debater e lutar pela sobrevivência – mas para isso terá de acordar e perceber o perigo que corre.