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A chamada "arte erudita" está no inferno astral. Não é de hoje. Essa fogueira deve contar duas décadas e cacarecos de labaredas. O preço de tanto tempo queimando lenha é que quem perde são sempre as orquestras e os balés, pelo simples motivo de que se tornaram objetos de uma discussão viciada, sonolenta e preguiçosa. De um lado, os defensores de verba, espaço, dignidade e políticas adequadas tendem a repetir seu discurso educado. É humilhante ter de usar bravatas para fazer valer o que é óbvio. Resta-lhes afirmar a importância e o papel das artes elaboradoras na formação do cidadão e o papel do Estado nesse fomento. Do outro lado da mesa, o Estado não só afirma que entende como também concorda, deixando margem para que o achemos cínico, negligente e eleitoreiro. Não é difícil imaginar algum gestor público amaldiçoando o dia em que inventaram o violino e a sapatilha.

É preciso refrigerar essa conversa, pois já são horas. Com perdão ao clichê, "os tempos mudaram". E "estão a mudar muito mal", como diz o escritor moçambicano Mia Couto. A máxima modernista de que a cultura é o que temos em comum – o que nos iguala – e de que a arte tem poder de mudança se tornou um conceito empoeirado, disseminado com paixão apenas no baixo circuito humanista das universidades. De resto, o assunto é mercado. Nesse sentido, é notável a militância do intelectual britânico Terry Eagleton. O literato nunca perde o bom humor e a oportunidade para tratar do assunto, o que por si só é um ganho. Não cansa de lembrar, por exemplo, que a cultura não tira o sono de nenhum executivo do Banco Mundial. Que deixou de ser um problema. Basta colocar as artes na perspectiva das armas químicas de Bashar Assad para concordar. Mas devemos tomar cuidado. Eagleton diz o que queremos ouvir, para em seguida nos passar uma rasteira. Outra coisa não quer senão mostrar a fria em que nos metemos ao relegar a alta cultura à despensa. No lugar de nos vermos como humanidade, numa obra de Shakespeare, passamos a desejar ver nossa pequena história contada nos programas televisivos de domingo, como se a projeção do nosso umbigo fosse a mais alta glória a que alguém possa ser alçado.

O preço dessa inversão é que a cultura particular cada vez mais se sobrepõe à cultura constituída, profunda, provada no tempo – patrimônio que cultivamos de geração em geração para nos reconhecermos como parte de alguma coisa. E aí voltamos ao segundo parágrafo. Manobra difícil essa. O povão está deixando de ser cúmplice do debate cultural. Pudera. Cada vez mais se acostuma a ser "agradado" culturalmente – uma, duas vezes por ano –, levando consigo sua tribo de diferentes. Balé, orquestra? Que chato. Cultivar essas "coisas antigas" exige esforço nas horas vagas.

Impossível não dizer que o poder público se rendeu burra ou maldosamente a essa lógica que faz da cultura um bálsamo de entretenimento, e não de som e de fúria. O que ganharia fazendo a coisa certa, afinal? Além do mais – via de regra nas grandes instituições, das igrejas, passando pela imprensa, à escola e ao Estado – os homens e mulheres com algum caldo cultural viraram mobília encostada. Faltam vozes. Tristes trópicos.

Vale lembrar dois assuntos recentes do noticiário cultural: o encurtamento "bolebolense" da Oficina de Música e o anúncio "saramandista" de que o Teatro Guaíra não será mais a casa da Orquestra Sinfônica do Paraná e mesmo talvez do balé. Não é por vaidade de alguém do passado que a capital paranaense tem oficina, orquestra e coisa e tal. O mesmo se diga das artes visuais. Determinado filão da cultura se desenvolveu aqui porque havia ambiente para isso. Há raízes. Se esse argumento não servir, ora, que se recorra ao mundo corporativo e às múltiplas teorias do capital humano. Desconhecê-las é passaporte para o fracasso – aquele fracasso que vem de repente, quando tudo parece estar bem. Não é praga. É estatística. Numa outra crise semelhante, década atrás, o Caderno G da Gazeta do Povo mostrou a presença de instrumentistas paranaenses em orquestras importantes da Europa. Foi difícil, à época, não se perguntar como chegaram lá. Deviam seu êxito à Escola de Música e Belas Artes, claro, sem a qual não tem como essa conversa avançar. Mas também às suas famílias. E à Orquestra Sinfônica, à qual acompanharam numa manhã de domingo. Às igrejas. À cidade onde nasceram.

Eis o ponto. A sofreguidão com que a cultura vem sendo tratada nos subestima no que temos de mais caro. Não vai sair barato. Não se tem notícia de alguma cidade ou região que tenha se tornado rica, relevante, expressiva e avançada sem que tivesse garantido aos seus ouvir os acordes capaz de acordá-los para a humanidade que carregam. O resto são diabos.

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