Ainda há tempo para militares e islamitas evitarem a guerra civil no Egito; aparentemente, o que não há é vontade de buscar o entendimento

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A tensão entre os militares egípcios, que comandam o país desde o golpe que derrubou o presidente Mohamed Mursi, em 3 de julho, e a Irmandade Muçulmana, apeada do poder após sua vitória eleitoral em 2012, chegou nesta semana a um ponto que muitos temem não ter volta. Na quarta-feira, forças do governo mataram pelo menos 500 pessoas ao atacar acampamentos de partidários de Mursi, no Cairo e em diversas outras cidades. Na quinta-feira, o Ministério do Interior autorizou as forças de segurança a usar armas e munição letais contra quem confrontar a polícia ou atacar patrimônio público (autorização que, a julgar pelos fatos de quarta-feira, é mera formalidade). O vice-presidente interino, Mohamed ElBaradei, renunciou ao cargo, descontente com o rumo dos acontecimentos. "Não posso carregar a responsabilidade por um derramamento de sangue", disse em carta dirigida ao presidente Adly Mansur.

ElBaradei pouco podia fazer para conter os militares, que são quem efetivamente dá as cartas no Egito atual. Os fatos recentes sugerem que sua presença no governo era uma mera tentativa de ganhar credibilidade, especialmente no cenário internacional, no qual o ex-diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica e Nobel da Paz de 2005 é amplamente respeitado. Mas, com a saída de cena de um dos principais defensores de uma solução negociada para o impasse egípcio, são os extremistas que ganham força – e eles estão dos dois lados.

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Da parte das Forças Armadas, percebe-se a intenção de marginalizar os islamitas. O comitê criado pelos generais e pelo governo civil para emendar a Constituição está na mesma situação em que Mursi havia caído: se o ex-presidente havia permitido que a Irmandade Muçulmana e os salafistas marginalizassem os seculares e os cristãos na hora de redigir a nova Carta Magna, agora os muçulmanos estão sub-representados no grupo que está reescrevendo a legislação (embora a Irmandade tenha sua parcela de culpa ao ter recusado as ofertas feitas pelos militares antes de a violência se espalhar). Assim será impossível buscar qualquer tipo de consenso que permita colocar um fim ao conflito.

Do outro lado, a repressão militar fortalece os islamitas mais adeptos de uma resposta igualmente violenta. Facções muçulmanas, algumas das quais chegaram a se opor à Irmandade Muçulmana, agora unem forças com o grupo. Entre os resultados da radicalização estão os ataques a igrejas cristãs, o que remete a um cenário muito similar ao da Síria, onde os cristãos preferem a permanência do ditador Bashar Assad não por causa de suas eventuais virtudes, mas porque a opção – um regime islâmico – seria ainda pior para eles.

Aliás, a situação egípcia não evoca paralelos apenas com o banho de sangue sírio, mas também recorda o ocorrido na Argélia, em 1991. Após o sucesso da Frente Islâmica de Salvação (FIS) na primeira rodada das eleições parlamentares, conquistando 47% das cadeiras definidas na ocasião, os militares cancelaram o segundo turno (no qual, acreditava-se, a FIS conseguiria mais parlamentares e teria maioria suficiente para mudar a Constituição), removeram o presidente e baniram a FIS. O resultado foi uma guerra civil que durou dez anos e, apesar da derrota dos islamitas, deu origem a grupos ativos até hoje, como a Al-Qaeda no Magreb Islâmico. O número de mortos na Argélia está estimado entre 44 mil e 200 mil pessoas. O Egito ainda não chegou a esse ponto, mas as semelhanças no roteiro são motivo de grande preocupação.

E presos entre os dois lados do conflito estão os egípcios comuns, muitos dos quais pediram a saída do presidente Mursi, mas que também não aceitam um regime autoritário militar – afinal, foi justamente contra uma ditadura similar que eles haviam ido às ruas no início da Primavera Árabe, em 2011. Conscientes desse histórico, os militares deveriam deixar as tropas nos quartéis e dirigir esforços para a organização de eleições imediatas, para o Executivo e o Legislativo, garantindo não só a participação dos islamitas (de forma que, se eles não participarem, terá sido por escolha própria), mas também o respeito ao resultado, seja qual for. Há tempo para impedir o Egito de seguir o caminho da Síria e da Argélia; o que vem faltando é disposição para o diálogo.