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Editorial

O totalitarismo disfarçado de combate à intolerância religiosa

Propagar a própria religião e estimular os demais a aderir a ela é direito básico garantido pela liberdade religiosa, mas para o governo da Bahia é "discurso de ódio" e "crime". (Foto: Monika Robak/Pixabay)

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Na eleição presidencial de 2022, um dos tabus estabelecidos pela Justiça Eleitoral foi a aliança entre o petista Lula e o ditador nicaraguense Daniel Ortega, uma amizade tão notória que nenhum dos lados fazia questão de esconder. Em seu país, Ortega praticamente destruiu as liberdades de expressão, de imprensa e religiosa, sem que se ouvisse um pio de seus amigos brasileiros. O temor de que Lula chegue no Brasil aos extremos impostos por Ortega aos nicaraguenses – como a recente condenação do bispo Rolando Álvarez a 26 anos de prisão – pode até ser infundado, mas, como lembrou meses atrás o colunista da Gazeta do Povo Flávio Gordon, nenhum regime adversário da liberdade religiosa sai fechando igrejas de imediato; as restrições mais severas são apenas o ponto culminante de todo um processo que se inicia com uma perseguição “não violenta”, que passa por fases como a ridicularização da crença e o assédio administrativo, burocrático e judicial.

Um exemplo desse tipo de ataque que, por trás da sutileza e de supostas boas intenções, esconde uma violação escancarada da laicidade estatal acaba de vir do governo da Bahia, estado governado pelo PT desde 2007. Em publicação no Instagram, o governo estadual e a Secretaria de Estado da Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi) listaram uma série de “frases e comentários carregados de ódio” que “são crimes, de acordo com o Código Penal Brasileiro”. Entre essas frases estão “Você precisa encontrar Jesus”, “Isso lá é religião?”, “Macumba é coisa do satanás” e “É de gesso, não vai te ouvir”. Cada exemplo é acompanhado de explicações didáticas como “Não é só Jesus. O princípio básico de todas as religiões é o amor, o que basta é encontrar aquela que te faz bem e que eleve a espiritualidade e o afeto entre as pessoas”, ou “Não temos o direito de criticar ou julgar”, ou ainda “Todas as doutrinas promovem bons sentimentos e afeto”.

Ao tomar para si o papel de determinar comportamentos e “verdades” de cunho religioso, o governo da Bahia vai muito além de simplesmente jogar no lixo a laicidade: ele se porta como autêntico totalitarismo

Em outras palavras, sob o pretexto de combater a intolerância religiosa, o governo da Bahia está simplesmente assumindo o papel de catequista, teólogo ou líder religioso, dizendo o que cada um deve buscar em uma religião, o que é ou não verdade em termos de fé, o que um fiel pode ou não pode dizer ou discutir... já temos aí uma ofensa explícita à laicidade estatal, pela qual o poder político não se intromete, de forma alguma, na esfera religiosa. Mas, ao tomar para si o papel de determinar comportamentos e “verdades” de cunho religioso, o governo da Bahia vai muito além de simplesmente jogar no lixo a laicidade: ele se porta como autêntico totalitarismo. Pois, se um regime autoritário muitas vezes se limita a exercer com mão de ferro o poder político, o regime totalitário se imiscui em todas as esferas da vida humana, como a religião, determinando que crenças são aceitáveis e em que termos alguém pode viver sua fé. Foi assim que a União Soviética, por exemplo, perseguiu as igrejas e estabeleceu o ateísmo de Estado; a China prefere estabelecer versões “estatais” de religiões como o catolicismo, caçando e prendendo os que não aderem a essas entidades controladas pelo Partido Comunista.

O colunista da Gazeta Guilherme de Carvalho, ao analisar a campanha do governo baiano, ressaltou alguns dos aspectos mais sórdidos da iniciativa, como a criminalização da atividade evangelizadora, que está na essência de praticamente todas as religiões. Afinal, é natural que quem creia em algo e esteja convencido de ter encontrado a verdade queira propagá-la aos demais. Para os cristãos, evangelizar é justamente dizer a outros que eles “precisam encontrar Jesus” e, como afirma Carvalho, desejar que os outros também tomem conhecimento da verdade é uma atitude que demonstra grande consideração para com o próximo, desde que não se recorra à coerção – este era um dos temas do tão famoso quanto distorcido discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, em 2006. Mas o direito de difundir a própria fé, parte indispensável da liberdade religiosa, é transformado pelo governo da Bahia em “discurso de ódio” e crime (obviamente, a campanha não se presta a informar em qual artigo do Código Penal alguém que está divulgando sua fé seria enquadrado, até porque não existe tal situação na lei penal), quando na verdade a intolerância está em impedir uma pessoa de levar aos demais aquilo que ela considera ser a verdade sobre algumas das questões mais fundamentais da existência humana.

E quanto às demais frases? Elas refletem apenas o outro lado do mesmo direito: o de submeter suas convicções religiosas ao “mercado de ideias”. Como lembrou Guilherme de Carvalho ao comentar a campanha baiana, há uma via de mão dupla: todos têm o direito tanto de propagar sua fé quanto de criticar a crença alheia – e precisam estar dispostos a ouvir críticas à própria religião. “Os instrumentos internacionais deixam claro que as crenças religiosas podem ser escrutinizadas e contestadas no debate religioso e filosófico público, desde que as pessoas não sejam estereotipadas e que a violência não seja estimulada”, afirma, mostrando qual é o limite que não deve ser ultrapassado quando se trata de discutir religião. Por mais que muitos dos que creem em Deus possam se incomodar ao ver sua crença ou sua divindade chamada de “delírio”, a ninguém ocorreria, por exemplo, pedir a censura do famoso livro de Richard Dawkins com esse título – mas é justamente o que faz o governo da Bahia ao afirmar que determinadas expressões de desaprovação a crenças e rituais são “crime de ódio”. A vedação estatal à crítica às crenças e práticas religiosas alheias, portanto, é tão violadora da liberdade religiosa quanto a vedação à defesa pública das próprias crenças e práticas religiosas.

Qualquer pessoa imbuída de bom senso e, ao mesmo tempo, de um profundo respeito pelos adeptos de todas as religiões (ou de religião nenhuma) terá enorme dificuldade para compreender onde estão o “ódio” e o “crime” nas afirmações que o governo baiano qualifica como tais, mas saberá identificar de imediato a estratégia de classificar como “discurso de ódio” qualquer afirmação que se pretenda banir da esfera pública, como é o caso de alguns ditos “progressistas” em relação ao discurso religioso. Assim como a cartilha de “expressões racistas” do TSE que recorria a uma etimologia de botequim, a lista de “frases e comentários carregados de ódio” do governo baiano é uma tentativa canhestra de controlar a população por meio da linguagem – neste caso, ainda por cima, anulando uma liberdade relacionada a um aspecto fundamental da experiência humana. Como afirmou Carvalho, sob o pretexto do combate à intolerância religiosa, é o governo da Bahia que comete intolerância religiosa ao se portar como validador do discurso religioso e pretender determinar como alguém deve exercer sua fé. Como dissemos, um totalitarismo que por ora se manifesta de modo sutil, mas que, se não é contido, mais cedo ou mais tarde trocará a saudável laicidade estabelecida na Constituição de 1988 pelo laicismo antirreligioso que se transforma em perseguição ostensiva.

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