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A ministra Cármen Lúcia durante sessão da Primeira Turma do STF, em maio de 2024.
A ministra Cármen Lúcia durante sessão da Primeira Turma do STF, em maio.| Foto: Antonio Augusto/SCO/STF

No próximo dia 3 de junho, Alexandre de Moraes não só encerra sua passagem pela presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que ocupa desde 2022, como também deixa a corte eleitoral, substituído por seu colega de STF André Mendonça. É um período que não deixará saudades para ninguém que defenda as liberdades democráticas, já que, durante o biênio em que Moraes exerceu o comando do TSE, o ministro levou para o tribunal o mesmo espírito liberticida que já vinha colocando em prática desde a abertura do inquérito das fake news no Supremo, em 2019. O pleito de 2022 foi terrivelmente desequilibrado graças a inúmeras decisões que cercearam a liberdade de expressão em benefício de um dos candidatos e em desfavor de seu principal adversário; a corte chegou ao ponto de determinar censura prévia a conteúdos que os ministros nem sequer tinham visto, e ordenar a publicação de um direito de resposta repleto de mentiras, às vésperas do segundo turno.

A presidência do TSE será exercida, no biênio 2024-2026, pela ministra Cármen Lúcia, escolhida no começo de maio – a eleição é mera formalidade, pois ela já era a vice-presidente da corte, cargo que passa a ser de Nunes Marques. Se estivéssemos falando da Cármen Lúcia de quase dez anos atrás, poderíamos comemorar o fato de o TSE passar a ser presidido por alguém que usara o ditado popular “cala a boca já morreu” em um voto célebre proferido em 2015; à época, ela era relatora de uma ação sobre a publicação de biografias não autorizadas, e seu voto dispensando a autorização do biografado foi seguido por todos os demais ministros. A Cármen Lúcia de hoje, no entanto, não nos dá razões para acreditar que o TSE reverterá o curso e deixará de dar sua contribuição ao atual apagão da liberdade de expressão que atormenta o Brasil.

A Cármen Lúcia do “cala a boca já morreu” teria tudo para trazer uma lufada de ar fresco capaz de iniciar um retorno do Brasil à normalidade democrática, mas não a sua versão atual

Cármen Lúcia não mudou sozinha, é verdade; muitos dos ministros que endossaram o “cala a boca já morreu” também apoiaram inúmeras medidas contrárias à liberdade de expressão que seriam adotadas posteriormente, incluindo a própria continuação do inquérito das fake news. No TSE, porém, a ministra conseguiu fazer mais que outros colegas de Supremo que não integraram a corte eleitoral. Ela foi favorável à autoconcessão de poderes de polícia à Justiça Eleitoral, podendo determinar “de ofício” (ou seja, sem necessidade de a Justiça ser provocada a agir) a remoção de conteúdos; e, mais recentemente, foi ela a relatora das novas resoluções do TSE que valerão para as próximas eleições municipais e praticamente forçam as empresas de mídias sociais a aderir à “polícia do pensamento” instituída pela corte eleitoral ao longo desses anos.

Especialmente emblemáticas, no entanto, são as suas palavras durante um julgamento crucial em 2022: o que instituiu censura prévia ao documentário Quem mandou matar Jair Bolsonaro?, que a produtora Brasil Paralelo pretendia estrear dias antes do segundo turno das eleições daquele ano. O relator Benedito Gonçalves havia proibido monocraticamente que o vídeo fosse ao ar; quando o plenário do TSE analisou a liminar, Cármen Lúcia até deu a entender que sabia muito bem o que estava em jogo ao dizer que seguia Gonçalves “com todos os cuidados” e que a proibição do documentário “a preocupa enormemente”. Mas, ao acrescentar que tal proibição deveria ser revogada caso a situação estivesse “desbordando para uma censura”, ela adotou a novilíngua liberticida dos tribunais superiores, tentando omitir que a censura já estava em pleno funcionamento. Por fim, saiu-se com um “vejo isso como uma situação excepcionalíssima”, como se isso justificasse lançar no lixo os artigos da Constituição que vedam a censura no país. O julgamento terminou com o placar de 4 a 3 em favor da proibição – a Cármen Lúcia de 2015 teria bastado para que o resultado fosse diferente.

Pois de “exceção” em “exceção” a censura se tornou permanente, parte da vida política do país. Cidadãos são impedidos de se expressar – sobre qualquer assunto! – em mídias sociais; na “menos pior” das hipóteses, têm suas publicações bloqueadas, tornadas invisíveis a brasileiros que não usem recursos como VPNs. E isso ocorreu com o aval de quem agora ocupará a presidência do TSE, mas que no passado tivera a felicidade de fazer uma bela defesa da liberdade de expressão no principal tribunal do país. A Cármen Lúcia do “cala a boca já morreu” teria tudo para trazer uma lufada de ar fresco capaz de iniciar um retorno do Brasil à normalidade democrática, mas não a sua versão atual.

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