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O que fazer diante de uma decisão das cortes superiores que se revela absolutamente injusta, descabida de fundamento legal, e que afronta diretamente qualquer bom senso? É isso o que se perguntam há dias todos aqueles que, com razão, ficaram indignados com a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de cassar a candidatura do deputado federal Deltan Dallagnol. Em menos de um minuto, a corte máxima eleitoral, num malabarismo jurídico tosco, ignorou a lei existente, desrespeitou o próprio processo eleitoral, e jogou no lixo a vontade de milhares de eleitores. Tal atentado não pode ficar sem uma resposta clara da sociedade e de seus representantes eleitos, que, no nosso entender, podem e devem se colocar de forma firme contra esse abuso.
Por se tratar de uma decisão de uma corte superior, há discussões sobre a possibilidade legal de o Congresso Nacional deixar de cumprir o que determinou o TSE. Alguns defendem que a única possibilidade é o Congresso simplesmente acatar a decisão sem questionamentos. Neste caso, de pouco valeria o regimento interno da casa, que prevê que antes de o mandato de Dallagnol ser efetivamente cassado, seja aberto um processo pela corregedoria da Câmara dos Deputados, durante o qual o deputado poderá apresentar sua defesa. Apenas após o término do procedimento haveria uma decisão final. Caso não haja outra posição possível senão cumprir o que diz o TSE, todo o processo na corregedoria da Câmara não passaria de uma perda de tempo, uma mera formalidade burocrática – um circo para dar ares de legalidade ao abuso.
A reação do Congresso não deve ser apenas contra a cassação injusta de um mandato, mas contra a sobreposição de Poderes, um atentado direto do TSE contra as prerrogativas do Poder Legislativo.
Mas não é esse o nosso entendimento. Acreditamos que há, sim, espaço legal para que o Congresso possa agir contra a decisão leviana do TSE, impedindo não apenas a cassação do mandato do deputado, mas também reafirmando seu papel e independência frente aos demais Poderes. Como já pontuamos, a decisão do TSE foi baseada numa distorção da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010) e da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90). Segundo essas leis, são considerados inelegíveis magistrados e os membros do Ministério Público que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar (PAD). Ou seja, se Deltan Dallagnol tivesse um PAD aberto contra ele na época em que pediu sua exoneração do MPF para poder concorrer a uma vaga na Câmara, sua candidatura deveria, sim, ser cassada. Acontece que não havia nenhum PAD contra Dallagnol. Tanto que os entendimentos do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE) e da Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE) foram claros em não ver nenhum motivo para a cassação da candidatura.
Mas o ministro Benedito Gonçalves citou a existência de “reclamações disciplinares e pedidos de providências” em relação à Dallagnol, que poderiam levar a uma futura abertura de um PAD, e que isso era suficiente para cassar a candidatura do deputado. Trata-se de um absurdo completo: reclamações disciplinares não levam necessariamente à abertura de um PAD, podendo ser simplesmente arquivadas. Outro ponto fundamental é que uma reclamação disciplinar pode ser proposta por qualquer um, mesmo sem provas, inclusive por réus insatisfeitos e inimigos políticos – e há de se imaginar a quantidade de réus raivosos por terem sido descobertos e condenados pela Lava Jato, da qual Dallagnol fazia parte.
No Plenário os congressistas deverão deixar claro se estão verdadeiramente a favor da democracia, da legalidade, da independência entre os Poderes.
Como bem pontuou o jurista Ives Gandra Martins em uma breve análise do caso Dallagnol publicada nas redes sociais, ao cassar a candidatura do deputado, Benedito Gonçalves, e os demais membros do TSE que chancelaram a decisão, acrescentaram uma outra possibilidade de inelegibilidade, outra hipótese de punição, às já previstas pela lei. Essa hipótese seria a de que são considerados inelegíveis membros do Ministério Público que pedem exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de “reclamações disciplinares” e não apenas de processo administrativo disciplinar (PAD). Ora, legislar, como bem sabemos, é função do Legislativo, do Congresso Nacional, que, inclusive, foi responsável pela discussão e aprovação das leis da Ficha Limpa e de Inelegibilidades. Não cabe ao Judiciário incluir novos itens nessas leis ou modificá-las; sua função é apenas aplicá-las, da forma como os legisladores estabeleceram.
Uma vez que a decisão de cassação da candidatura de Deltan Dallagnol se fez com base em uma inclusão indevida na lei previamente discutida e aprovada pelo Congresso, tem-se uma interferência direta do Judiciário sobre o Legislativo. Por isso, a reação do Congresso não deve ser apenas contra a cassação injusta de um mandato, mas contra a sobreposição de Poderes, contra um atentado direto do TSE contra as prerrogativas do Poder Legislativo. Sendo assim, faz-se necessário que o Legislativo aplique o que diz a Constituição Nacional no inciso XI do art. 49, que é dever exclusivo do Congresso Nacional “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.
Por mais que tenhamos cotidianamente casos em que o Judiciário busque tomar o lugar do Legislativo, criando normas para temas que só poderiam ser decididos após longo debate no Parlamento, a cassação de Deltan Dallagnol é ainda mais emblemática por já haver uma legislação definida e bem clara a respeito. Não há qualquer dúvida sobre as hipóteses em que a inelegibilidade deve ser aplicada e nenhuma delas é o caso de Deltan Dallagnol. Para poder condená-lo, o TSE teve de inventar uma nova legislação, roubando a função do Legislativo. Se o Congresso não reagir firmemente a tal abuso estará renunciando, de uma vez por todas, à sua independência e razão de ser, e assinando sua sentença de submissão permanente aos ditames do Judiciário.
É claro que dentro do próprio Congresso existem aqueles que não encontram problema algum em calcar aos pés a independência dos Poderes e se colocar à disposição de interesses escusos. A esses maus representantes da sociedade interessa que a cassação do mandato de Deltan Dallagnol caminhe rapidamente, sem alarde, e sem ser submetida ao Plenário. Por isso, cabe aos parlamentares que ainda respeitam a Constituição Nacional e os votos dos cidadãos que os elegeram, em especial aqueles eleitos por se posicionaram contra a corrupção e os abusos do Judiciário, pressionar a mesa diretora da Câmara, presidida por Arthur Lira, para garantir que qualquer decisão sobre o mandato de Deltan Dallagnol seja submetida ao Plenário da Câmara.
Apenas assim será possível debater com profundidade um assunto tão grave, que implica não apenas na manutenção do mandato de um deputado injustamente perseguido, mas que pode definir qual será o futuro do próprio Poder Legislativo: um real Poder da República ou um vassalo do Judiciário. Se algumas cortes parecem ter se rendido ao propósito ignóbil de funcionar como um aparato de perseguição política àqueles que se colocam contra o sistema de corrupção generalizada, e para isso não hesitam em avançar sobre as prerrogativas dos demais Poderes, cabe ao Legislativo firmar sua independência e restabelecer a ordem. É no Plenário que os congressistas deverão deixar claro se estão verdadeiramente a favor da democracia, da legalidade, da independência entre os Poderes, do respeito à Constituição, da não interferência do Judiciário, e da defesa dos interesses da população, já tão cansada de ver aqueles que buscaram combater a corrupção sendo perseguidos, enquanto os corruptos são soltos, quando não alçados a postos no alto escalão dos governos. O Congresso não pode renunciar às suas responsabilidades.