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Uma situação surreal ocorrida na Câmara Municipal de Curitiba mostra como uma confusão jurisprudencial no STF e uma regra de cunho moralizante, mas que dá margem para consequências amplamente desproporcionais, está subvertendo a vontade que o eleitor manifestou nas urnas. O vereador Éder Borges (PP) foi, em suas próprias palavras, “cassado por um meme”: na última sexta-feira, a Mesa Diretora da casa legislativa municipal decidiu pela perda de mandato de Borges, de acordo com a legislação municipal e o Regimento Interno da Câmara, que preveem a perda de mandato após condenação criminal transitada em julgado. O ato deve ser formalizado nesta segunda-feira.
No segundo semestre de 2016, Curitiba viu uma série de invasões de escolas estaduais em protesto contra reformas no ensino propostas pelo governo de Michel Temer. A APP-Sindicato, que representa os professores, apoiou explicitamente o movimento em nota oficial. À época, Borges era líder do Movimento Brasil Livre na capital paranaense e não tinha mandato eletivo; ele publicou, em seus perfis de mídias sociais, uma montagem na qual a foice e o martelo comunistas foram digitalmente inseridos em uma bandeira vermelha pendurada pelos estudantes. Na publicação, Borges escreveu “Bandeira comunista hasteada em escola do Paraná” e “A APP faz isso com seu filho”. O sindicato buscou o Juizado Especial (popularmente conhecido como “tribunal de pequenas causas”) e a queixa-crime por difamação fora inicialmente recusada; na segunda instância, a Turma Recursal, Borges foi condenado, em outubro de 2021 (ou seja, já exercendo mandato de vereador, conquistado nas eleições de 2020), a 25 dias de prisão e pagamento de 20 dias-multa. Não é nossa intenção, no momento, avaliar se a condenação foi acertada ou não – este é mais um dos tantos casos recentes que vêm testando os limites da liberdade de expressão –, mas sim chamar a atenção para a injustiça que está se seguindo ao veredito do Judiciário.
A cassação é pena bastante desproporcional à gravidade do crime pelo qual Éder Borges foi condenado
A regra da Lei Orgânica de Curitiba que trata da perda de mandato do vereador “que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”, presente no artigo 22, VI, transpõe dispositivo idêntico presente na Constituição Federal, aplicado a deputados federais e senadores: o artigo 55, VI. No entanto, a Carta Magna prevê que, neste caso, “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta”, ou seja, com votação em plenário. A lei curitibana diz que “a perda do mandato será decidida pela Câmara de Vereadores” – não há referência à votação, mas sua necessidade fica implícita pela existência da regra federal. Além disso, há o contraste com os casos em que a cassação é automática: tanto a Constituição (no artigo 55, §3.º) quanto a Lei Orgânica de Curitiba (no artigo 22, §3.º) mencionam situações em que “a perda será declarada pela Mesa”, mas a condenação criminal transitada em julgado não é uma delas.
Há um motivo por trás dessa regra. Um outro caso em que a cassação depende do plenário é o da quebra de decoro; aqui, cabe aos pares do parlamentar decidir se realmente houve tal violação. Já no caso da condenação criminal, sua existência é um fato; o que deputados, senadores e vereadores devem analisar não é se o colega realmente foi condenado ou não, nem se a condenação foi justa ou não: eles decidem se o motivo pelo qual se deu a condenação justifica uma pena severa como a cassação, que é a anulação da vontade popular manifestada nas urnas. Afinal, há crimes com diferentes graus de gravidade e potencial ofensivo; muitos deles certamente tornam um parlamentar indigno de representar a população e justificam uma cassação, mas outros não. O que está em jogo, aqui, é a proporcionalidade entre o crime praticado e a pena política que se está propondo ao infrator. “Indisfarçável a impressão de iniquidade, por exemplo, na aplicação da suspensão dos direitos políticos a um condenado por uma lesão corporal leve decorrente de uma briga singela ou de uma colisão de veículos”, escrevera o jurista Dyrceu Aguiar Dias Cintra Júnior, citado pelo então ministro Marco Aurélio Mello durante julgamento de 2019 no Supremo.
No entanto, o Supremo, com uma série de decisões recentes, causou confusão sobre a possibilidade de uma perda automática de mandato em casos de condenação criminal transitada em julgado. Durante o mensalão, o plenário da corte decidiu pela cassação automática sempre que a perda do mandato constasse explicitamente da sentença condenatória. Posteriormente, a Primeira Turma resolveu, em outros julgamentos, que a cassação seria automática apenas no caso de pena superior a 120 dias em regime fechado. Ambas as interpretações já são suficientemente problemáticas por retirar dos parlamentares uma prerrogativa expressamente prevista na Constituição, eliminando-se justamente aquela avaliação de proporcionalidade. Mas, para tornar ainda pior o caso em tela, mesmo que a condenação de Borges não se encaixe em nenhuma dessas situações (sua pena é menor, e a sentença da Turma Recursal não menciona a perda de mandato), a Mesa Diretora insistiu em decretar a cassação automática, sem votação em plenário, alegando haver jurisprudência que embasasse o procedimento.
Ou seja, sua cassação sem o necessário escrutínio dos pares muito provavelmente será inconstitucional – mas isso não significa que, caso houvesse a votação em plenário, o desfecho devesse ser a perda de mandato. É aqui que entra o já citado juízo de proporcionalidade. Falamos de um crime de potencial ofensivo mínimo, a ponto de ter sido julgado nas cortes de pequenas causas, rendendo punição de poucos dias. A cassação é pena bastante desproporcional à gravidade do crime pelo qual Borges foi condenado. Retirar-lhe o mandato seria, assim, cometer uma injustiça que extrapola as consequências desejadas pelo tribunal ao condenar Borges por difamação. A preocupação atual com as fake news pode ser justificada, mas a caça às bruxas realizada em seu nome não o é, muito menos quando ela termina afetando seriamente a representação popular desejada pelas urnas.