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Fernando Francischini ficou dois dias na Assembleia por força da liminar de Nunes Marques.
Fernando Francischini ficou dois dias na Assembleia por força da liminar de Nunes Marques.| Foto: Dálie Felberg/Alep

Um imbróglio que já se arrasta há anos, envolvendo o deputado estadual paranaense cassado Fernando Francischini (União Brasil), ajuda a compreender a dimensão do atual clima de caça às bruxas em nome do combate às fake news. A “invenção” de condutas consideradas ilícitas ou mesmo de crimes sem previsão legal e uma interpretação demasiadamente larga da legislação estão introduzindo distorções graves no sistema jurídico brasileiro, tendo consequências sérias como a anulação da vontade popular manifestada nas urnas.

No dia do primeiro turno das eleições de 2018, Francischini, que era deputado federal à época e havia se candidatado a deputado estadual, realizou uma live em seus perfis nas mídias sociais com uma série de afirmações controversas. Segundo o político, houve pessoas que não conseguiam votar em Jair Bolsonaro (então no PSL) na urna eletrônica; as urnas onde isso ocorrera haviam sido apreendidas por fraude; e ele teria tido acesso a documentos da Justiça Eleitoral comprovando a irregularidade. Todas as informações eram falsas: nos vídeos que mostravam a suposta dificuldade em votar em Bolsonaro, ficava claro que naquele momento o eleitor deveria estar escolhendo o governador, e não o presidente da República. Além disso, não houve a apreensão de urnas denunciada por Francischini. O Ministério Público Eleitoral denunciou o deputado, mas o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE-PR) julgou a ação improcedente; o MPE recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral, que condenou Francischini por seis votos a um em outubro do ano passado, cassando o seu mandato e o de outros três parlamentares do PSL que tinham sido eleitos graças à enorme votação de Francischini.

Diante do episódio, é preciso indagar: Francischini certamente foi leviano e irresponsável na transmissão, mas teria ido além, fazendo algo que a lei considere ilícito? A resposta a esta questão é crucial, pois traz à tona todo o debate sobre a necessidade de que certa conduta esteja explicitamente vedada pela lei para que alguém seja condenado e punido pelo Poder Judiciário, e demonstra como essa necessidade tem sido distorcida pelos tribunais superiores em nome do combate às fake news. Não existe, no Brasil, algo que possa ser descrito simplesmente como “crime de fake news”, em si mesmo, mas disso não se pode concluir que a veiculação de informações falsas não possa ser criminosa. Tão equivocado quanto afirmar que toda mentira é (ou deveria ser) crime é afirmar que nenhuma mentira o é. A lei brasileira pune a difusão de informações falsas em certos casos, como nos crimes contra a honra, e também naquelas situações em que a mentira é um meio para a realização de uma finalidade ilícita ou criminosa.

Tão equivocado quanto afirmar que toda mentira é (ou deveria ser) crime é afirmar que nenhuma mentira o é

Também a lei eleitoral prevê casos em que mentiras proferidas em período de campanha ensejam punição, seja na esfera eleitoral ou mesmo na esfera penal. É o caso, por exemplo, do artigo 323 do Código Eleitoral – “divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado”. Mas este não foi o caso de Francischini, que tampouco poderia ser enquadrado nos artigos 296 (“Promover desordem que prejudique os trabalhos eleitorais”) ou 297 (“Impedir ou embaraçar o exercício do sufrágio”) do mesmo código, pois votação e apuração transcorreram normalmente apesar da live do deputado.

Restou, portanto, ao TSE a via do “abuso de poder”, prevista no artigo 22 da Lei de Inelegibilidades (Lei Complementar 64), que menciona a possibilidade de cassação do mandato por “abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”. A prática do TSE já consolidou a noção de que um abuso não precisa necessariamente ser também tipificado como crime para que dê margem à cassação do mandato. Daqui, portanto, emerge outra questão: ainda que Francischini não tenha cometido crime, teria cometido abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação, merecendo a cassação?

Tamanha punição, que ainda por cima anula de forma veemente a vontade popular manifesta nas urnas, exige que os julgadores adotem critérios bastante restritos ao considerar se houve ou não o abuso de poder ou uso indevido dos meios de comunicação alegado. No entanto, o que o TSE fez foi justamente o contrário, de duas formas.

Em primeiro lugar, houve um alargamento excessivo da interpretação do que constituiria “utilização indevida de meios de comunicação social”, pois o conceito sempre foi entendido como abarcando rádio, televisão e mídia eletrônica ou impressa. Ao julgar Francischini, o TSE incluiu nesta definição perfis pessoais em mídias sociais – interpretação que, até aquele momento, jamais havia sido adotada pela Justiça Eleitoral – e, para configurar o abuso, invocou elementos como os números da live (6 milhões de visualizações, 400 mil compartilhamentos e 105 mil comentários, segundo votos de ministros do TSE que votaram pela cassação).

A segunda distorção grave foi dissociar o ato (a live de Francischini) de seus efeitos reais. O fato é que a transmissão teve impacto praticamente nulo nos resultados, pois, tanto pela natureza das afirmações como pelo momento da publicação – menos de meia hora antes do fechamento das urnas –, a crítica à urna eletrônica não renderia votos adicionais nem a ele, nem a Bolsonaro. Mesmo o enorme alcance da transmissão não pode ser usado como critério confiável para se avaliar um eventual dano, pois os números se espalham no tempo, certamente não se concentrando naqueles poucos momentos entre a publicação e o fim da votação – e, efetivamente, como já afirmamos, não houve prejuízo nem ao processo de votação, nem à apuração.

Francischini levou o caso ao Supremo Tribunal Federal, e conseguiu, em 2 de junho, liminar do ministro Nunes Marques restabelecendo seu mandato. O ministro afirmou que os números da live não eram suficientes para estimar impacto efetivo da transmissão, e também mencionou o horário da publicação como fator relevante. “A disseminação de fatos inverídicos e de ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia é reprovável e merece disciplina própria, por meio de lei, com vistas a resguardar-se o processo eleitoral e a formação da vontade popular. Contudo, seu enquadramento como uso indevido dos meios de comunicação a partir do Artigo 22 da Lei de Inelegibilidades não é automático, nem pode ser aplicado de modo retroativo”, afirmou Nunes Marques. No entanto, poucos dias depois, a Segunda Turma do STF voltou a cassar o mandato de Francischini por três votos a dois, reforçando uma jurisprudência que nos parece muito temerária, especialmente à luz de recentes afirmações do ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o TSE durante o período eleitoral.

O Judiciário parece pronto para punir não apenas aquelas manifestações que são explicitamente descritas como crime ou ilícito na lei brasileira, mas também outros tipos de críticas e informações falsas, ainda que não haja lei a esse respeito

A difusão de acusações falsas sobre o processo eleitoral é, sim, extremamente preocupante porque mina a confiança dos cidadãos no meio de escolha de seus representantes. Mas, como escreveu Nunes Marques na liminar, trata-se de situação que “merece disciplina própria, por meio de lei” – lei esta que não existe até o momento. Isso não impediu Moraes de afirmar que “quem se utilizar de fake news, quem falar de fraude nas urnas, quem propagar discurso mentiroso, fraudulento e ódio, terá seu registro cassado, independentemente de candidato a qualquer dos cargos”, durante evento em Curitiba no último dia 3.

Ressalte-se, aqui, a gravidade do que está sendo proposto. Considerando tudo o que Moraes vem dizendo, desde o famoso “se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado”, a ideia que vem sendo repetida à exaustão é a de que o Judiciário está pronto para punir não apenas aquelas manifestações que são explicitamente descritas como crime ou ilícito na lei brasileira, mas também outros tipos de críticas e informações falsas, ainda que não haja lei a esse respeito, deixando a avaliação única e exclusivamente ao critério do julgador, em violação flagrante do inciso XXXIX do artigo 5.º da Constituição Federal. Em vez de o Legislativo aprovar uma lei que estabeleça parâmetros razoáveis para se possa, ao mesmo tempo, resguardar a liberdade de expressão e proteger a integridade do processo eleitoral, o Judiciário cria um tabu no qual a suposta perfeição das urnas eletrônicas não pode ser questionada, ainda que com argumentos técnicos e bem embasados, e por mais que, eleição após eleição, haja casos reais de urnas recolhidas por apresentarem problemas.

Jurisprudência não serve para criar tabus nem para “mandar recados” – no caso, ao presidente Jair Bolsonaro, que tem feito críticas constantes à votação eletrônica –, mas para interpretar a lei da melhor forma possível, tendo em vista o benefício da sociedade sem atropelar os direitos do réu. Os tribunais superiores, no entanto, vêm optando por se portar cada vez mais como agente político que como instituição imparcial. Ao cassar um deputado eleito e, depois, manter sua cassação apenas para fazer dele um “exemplo” do que pode ocorrer a quem difundir inverdades, ainda mais em um caso em que nem sequer se pode considerar que houve ilicitude, o Judiciário aprofunda uma postura que em nada colabora para a pacificação do país.

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