Em sua luta corporativista para manter o privilégio do auxílio-moradia, entidades da magistratura passaram a flertar até mesmo com a ideia de uma greve. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) estaria consultando seus membros a respeito de uma paralisação a ser realizada em 15 de março, uma semana antes de o auxílio-moradia dos magistrados ser finalmente julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal.
Em 2011, os magistrados já cruzaram os braços, também por iniciativa da Ajufe. Na ocasião, o presidente da entidade disse que se tratava de uma “paralisação”, não de uma “greve”, para driblar determinação do Conselho da Justiça Federal, que ordenou o desconto na folha dos juízes que aderiram à greve. O protesto ainda gerou críticas do então presidente do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen, para quem “os juízes são agentes de Estado e, rigorosamente, não devem promover greve, porque desempenham um serviço essencial. A sociedade não pode ficar refém da magistratura”.
A nota de esclarecimento da Ajufe afirma que “os juízes federais entraram no foco de poderosas forças em razão de sua atuação imparcial e combativa contra a corrupção e as desmazelas perpetradas na administração pública por alguns, independentemente de quem fossem, motivo pelo qual somente a eles busca-se minorar os direitos”, o que é uma tentativa de diversionismo semelhante à praticada por aqueles que têm destacado o recebimento do auxílio-moradia por magistrados que puniram os chefões petistas, especialmente o ex-presidente Lula; se estes usam o benefício como mero pretexto para desmoralizar o louvável trabalho da Lava Jato, a Ajufe se aproveita desse comportamento para desviar da verdadeira discussão sobre o auxílio-moradia, que, na forma como vem sendo concedido, é não apenas um insulto à moralidade, mas um desrespeito à Constituição, como já explicamos inúmeras vezes.
Raquel Dodge mostra um entendimento muito equivocado do que seja uma verba indenizatória
Mas não são apenas os juízes que têm se organizado em torno de interesses corporativistas em detrimento da moralidade e do bom uso do dinheiro do contribuinte. Uma outra ação que está no Supremo, diferente daquela relativa aos magistrados, foi ajuizada pela Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público (Ansemp), questionando o pagamento do benefício a procuradores e promotores. Em parecer enviado ao STF na semana passada, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu o auxílio-moradia, que é pago nos mesmos moldes daquele concedido aos juízes: um valor fixo de quase R$ 4,4 mil, concedido mesmo àqueles que têm imóvel próprio na cidade onde trabalham.
Raquel Dodge argumentou que o único critério a ser considerado é a existência de “residência oficial condigna para o membro do Ministério Público”; onde ela não existir, estaria justificada a concessão de auxílio-moradia, independentemente de o imóvel onde mora o promotor ou procurador ser próprio ou não. Ela chegou ao ponto de argumentar que o benefício se aplica no caso daqueles que têm imóvel próprio porque mesmo neste caso há gastos com sua manutenção – ou seja, Raquel Dodge pensa que os brasileiros “comuns”, que precisam pagar quando uma instalação elétrica ou hidráulica de sua casa, por exemplo, está com problemas, também devem bancar o cuidado dos imóveis próprios dos promotores e procuradores.
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Assim como os defensores do auxílio-moradia dos magistrados, Raquel Dodge mostra um entendimento muito equivocado do que seja uma verba indenizatória, ao defender o pagamento nos moldes atuais argumentando que “não há desvirtuamento da finalidade indenizatória pelo fato de a verba não distinguir membros proprietários de imóveis residenciais dos que não o são”. Para ter caráter indenizatório, o membro do MP teria de apresentar seus comprovantes de gastos e teria as despesas ressarcidas, mas não é isso o que ocorre. Pagamento em valor fixo para todos os procuradores e promotores, assim como para os juízes, não tem nada de indenizatório; é verba remuneratória, um aumento salarial por vias tortas.
Não é só para o Judiciário que o brasileiro olha com esperança no combate à corrupção: também o Ministério Público tem dado sua contribuição valiosa – sem a qual, aliás, o Judiciário não poderia fazer a sua parte. Mas juízes, promotores e procuradores parecem estar cegos pelo corporativismo quando passam a colocar tanto esforço na manutenção de privilégios imorais e de legalidade mais que questionável.