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Alexandre de Moraes ordenou remoção de reportagem segundo a qual Marcola teria demonstrado preferência pela vitória de Lula.
Alexandre de Moraes ordenou remoção de reportagem segundo a qual Marcola teria demonstrado preferência pela vitória de Lula.| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Ao contrário do raio da sabedoria popular, o raio da censura pode cair duas vezes no mesmo lugar. Em abril de 2019, o ministro Alexandre de Moraes, relator do abusivo inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal, censurou o site O Antagonista e a revista Crusoé, do mesmo grupo noticioso, por uma reportagem que associava o ministro Dias Toffoli ao empreiteiro Marcelo Odebrecht. Três anos e meio depois, no dia do primeiro turno da eleição, o mesmo Moraes, desta vez na qualidade de presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ordenou a retirada do ar de uma publicação de O Antagonista segundo a qual o bandido Marcola, o chefe da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), consideraria Lula preferível a Jair Bolsonaro. Moraes ainda determinou a remoção de publicações feitas pelo presidente da República e vários de seus apoiadores que citam a reportagem.

No dia 1.º, O Antagonista publicou reportagem assinada pelo jornalista Cláudio Dantas, com o título “Exclusivo: em interceptação telefônica da PF, Marcola declara voto em Lula. ‘É melhor, mesmo sendo pilantra’”. De acordo com o texto, Dantas teria tido acesso a transcrições de interceptações telefônicas de Marcola feitas pela Polícia Federal, na qual o bandido teria feito afirmações como “Se colocar um do lado do outro, o Lula é melhor que ele [Bolsonaro] para nós”; “Todo mundo sabe que o Lula é ladrão. Tem que sair fora mesmo desse arrombado aí [Bolsonaro]. Ele e os filhos dele”; e “Bolsonaro é parceiro da política, da milícia. Cara é sem futuro. O Lula também é sem futuro, só que entre os dois, não dá nem para comparar um com o outro”. Ato contínuo, a coligação encabeçada pelo PT acionou o TSE alegando haver “evidente e gravíssima desinformação”, apontando elementos como a presença de cabeçalho em apenas um dos prints publicados, enquanto os demais “estão absolutamente apócrifos”, e a alegação de que em nenhum momento Marcola menciona voto em Lula.

Chame-se as coisas pelo nome que têm: Alexandre de Moraes promove censura, em uma interferência desproporcional e inconstitucional, por violar o artigo 220 da Constituição

Há certa ironia no questionamento petista sobre a autenticidade de prints, já que a chamada “Vaza Jato” nem sequer isso chegou a mostrar. Essa deficiência, no entanto, não impediu que o PT e seus aliados na imprensa montassem todo um carnaval midiático que ajudou a criar o clima para algumas das mais teratológicas decisões recentes do Supremo, as mesmas que fizeram de Lula um ficha-limpa novamente, permitindo-lhe disputar a eleição ora em curso. Mas este detalhe é apenas um aspecto lateral de uma decisão bastante grave e que, mais uma vez, mostra que Alexandre de Moraes dá pouca ou nenhuma importância às próprias palavras proferidas em sua posse como presidente do TSE, em agosto.

“Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das diversas opiniões sobre os principais temas de interesse do eleitorado e sobre seus próprios governantes. A democracia não resistirá e não existirá, e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada”, disse Moraes naquela ocasião. E acrescentou: “Neste cenário, a livre circulação de ideias, de pensamentos, de opiniões, de críticas, essa livre circulação visa a fortalecer o Estado Democrático de Direito e a democratização do debate no ambiente eleitoral, de modo que a intervenção da Justiça Eleitoral deve ser mínima (...) é a plena proteção constitucional da exteriorização da opinião e não permite censura prévia pelo poder público”. No entanto, a intervenção que Moraes promoveu não teve nada de “mínima”; ela efetivamente ceifou a liberdade de expressão e instituiu censura.

Não negamos que uma informação comprovadamente mentirosa tem o potencial de desestabilizar uma eleição e violentar a vontade popular; a voz das urnas passa a ser a voz não de um povo livre, mas de um povo manipulado. Não cabe ao Judiciário declarar ou negar a veracidade de uma afirmação, mas, diante de informações “sabidamente inverídicas”, para usar a expressão corrente, justifica-se algum nível de interferência judicial, desde que ela seja “mínima”, como prometera (e não vem cumprindo) Moraes. O que isso significa, no caso de O Antagonista?

A única informação que poderia ser considerada “sabidamente inverídica” está na manchete do texto: Marcola não tem como “declarar voto” em Lula porque não pode votar, já que a condenação criminal lhe retirou os direitos políticos – embora a expressão pudesse ser lida também de forma figurada, inclusive como recomendação a membros do PCC que tivessem o direito ao voto. De resto, em nenhum momento o PT ou Moraes foram capazes de comprovar que as afirmações atribuídas a Marcola (nas quais efetivamente não existe menção a voto em Lula) são falsas. A interferência “mínima” aceitável, neste caso, seria exigir a retificação da informação considerada comprovadamente incorreta, a de que o chefe do PCC havia “declarado voto” em Lula, mantendo-se todo o restante. Restaria, ainda, dirimir uma controvérsia envolvendo a fonte da informação, pois a Polícia Federal do Paraná não era a responsável pela Operação Anjos da Guarda, citada na reportagem censurada e que desmontou um plano de resgate da cúpula do PCC em presídios de Brasília e Porto Velho (RO). Essa aparente falha de apuração, no entanto, também não serve de justificativa para a remoção total do conteúdo.

Chame-se, portanto, as coisas pelo nome que têm: Moraes promove censura, em uma interferência desproporcional e inconstitucional, por violar o artigo 220 da Constituição. Assim como ocorreu dias depois da decisão de Moraes, com o TSE censurando tweets sobre o apoio de Lula à ditadura de Daniel Ortega na Nicarágua, as liberdades de expressão e de imprensa são mais uma vez ignoradas, acrescentando mais um capítulo ao que chamamos de “apagão” dessas liberdades no Brasil recente. Assim como nos casos em que os candidatos Deltan Dallagnol e Paulo Martins foram condenados por mostrar trechos de delações premiadas da Lava Jato; ou em que o mesmo Dallagnol teve de remover um vídeo em que chamou o STF de “casa da mãe Joana”; ou em que a Folha de S.Paulo foi temporariamente obrigada a remover uma reportagem sobre transações imobiliárias da família de Bolsonaro, o que o Judiciário vem fazendo extrapola completamente sua função de manter a lisura do pleito. Usando as muletas do “discurso de ódio”, das “fake news” e do “ataque às instituições”, as cortes negam ao eleitor o direito de conhecer fatos, ainda que negativos, envolvendo candidatos, e cala postulantes a cargos eletivos. Assim não há como a democracia brasileira “resistir e existir”.

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