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Os pais do bebê britânico Charlie Gard, pivô de uma disputa judicial e de uma intensa discussão ética que envolveu até o papa Francisco e o presidente norte-americano, Donald Trump, decidiram que não mais insistirão no tratamento experimental oferecido nos Estados Unidos. Charlie, que completaria um ano em 4 de agosto, sofre de uma versão especialmente rara de uma doença degenerativa chamada Síndrome da Depleção do DNA Mitocondrial (ou MDDS, na sigla em inglês). Os aparelhos que o mantêm vivo serão desligados em uma data ainda não divulgada.

A controvérsia jurídica opôs os pais de Charlie, que se mobilizaram para buscar um tratamento para o filho assim que foi confirmado o diagnóstico, aos médicos do hospital onde o bebê estava internado desde outubro do ano passado. Connie Yates e Chris Gard levantaram dinheiro mais que suficiente para levar Charlie aos Estados Unidos, mas após o bebê sofrer uma série de convulsões, em janeiro, os médicos decidiram se opor a essa alternativa, alegando que a situação de Charlie era irreversível. Em fevereiro, o hospital solicitou o desligamento dos aparelhos. A lei britânica manda que a Justiça decida casos que envolvem discordância entre equipes médicas e os responsáveis legais pelos pacientes. A batalha jurídica que se seguiu levou meses, com o Judiciário negando todos os pedidos dos pais de Charlie; eles recorreram até onde foi possível, chegando até a Corte Europeia de Direitos Humanos, que no fim de junho negou o pleito de Connie e Chris – foi quando o caso ganhou repercussão mundial. Mas àquela altura já havia pouco a fazer por Charlie. A “janela de oportunidade” dentro da qual poderia haver alguma esperança para o bebê havia passado, e só por isso os pais desistiram de lutar pela vida do filho, após ouvir a avaliação do médico norte-americano Michio Hirano, que viajou para a Inglaterra com o único objetivo de examinar Charlie.

Os médicos do Great Ormond Street Hospital e a Justiça britânica claramente desrespeitaram um direito básico dos pais de Charlie

Os médicos do Great Ormond Street Hospital e a Justiça britânica claramente desrespeitaram um direito básico dos pais de Charlie. A situação era muito clara: se permanecesse em Londres, o bebê teria como destino inevitável a morte. Diante da possibilidade de um tratamento – ainda que não representasse a cura completa, ainda que se tratasse de uma terapia experimental, ainda que pudesse dar errado –, era perfeitamente razoável que os pais desejassem tentar essa via para salvar seu filho. Mas isso lhes foi veementemente negado, em uma intervenção injustificável do Estado sobre uma decisão que cabe à família.

Em uma cadeia macabra de omissão, cada dia que médicos, advogados e juízes passavam discutindo (e apenas discutindo), alegando defender os interesses de Charlie, representava uma chance a menos para o bebê, até chegar, como chegou, o momento em que não haveria mais nada a fazer e os pais fossem derrotados pelo cansaço, pela desesperança e pela constatação do inevitável.

A obstinação terapêutica, a insistência exagerada em prolongar artificialmente a vida, quase sempre causando sofrimento adicional ao paciente, é um erro. Mas o destino de Charlie foi traçado antes mesmo de se tornar um debate sobre ortotanásia (a decisão de deixar a natureza seguir seu rumo, levando à morte natural) e distanásia (a ação de manter o paciente vivo a qualquer preço): quando os médicos e a Justiça fecharam as portas a qualquer alternativa de tratamento, violando a vontade dos pais, deixaram claro que não apenas não ajudariam Charlie, mas também não deixariam mais ninguém fazê-lo. Este é o cerne da questão.

Leia também:Eutanásia em crianças e os limites da autodeterminação (artigo de Cicero Urban, publicado em 23 de fevereiro de 2014)

E, como se não bastasse terem, na prática, condenado Charlie Gard à morte, os tribunais britânicos e os médicos do Great Ormond Street Hospital decidiram impor aos pais uma crueldade final: seu filho não poderá nem mesmo morrer em casa, porque o equipamento de ventilação não passaria pelas portas da residência da família. “Nós queremos dar um banho nele em casa, colocá-lo numa cama em que ele nunca dormiu, mas isso nos está sendo negado. Nós sabemos qual vai ser o dia que o nosso filho vai morrer, mas não nos digam como isso vai acontecer”, pediu Chris em um vídeo feito no início de julho, pouco depois da decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos. Nesta quarta-feira, a Justiça deu prazo de um dia para a família de Charlie e a equipe médica se entenderem quanto ao local onde o bebê morrerá. Se não houver acordo até o meio-dia desta quinta-feira (horário de Londres), ele será transferido para uma clínica de cuidados paliativos, onde terá os aparelhos desligados em seguida. Quando decisões perfeitamente razoáveis dos pais a respeito do que consideram ser o melhor para seus filhos são ignoradas desta forma, impossível não se alarmar e não se indignar.

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