Os chilenos rejeitaram o texto de uma nova Constituição pela segunda vez em pouco mais de um ano. O referendo realizado no último domingo registrou uma diferença menor entre o “rejeito” e o “aprovo” na comparação com setembro de 2022, mas o fato é que este novo esforço está sepultado, assim como o anterior, marcando a rejeição de dois textos ideologicamente bem distintos. O presidente Gabriel Boric, de esquerda, já afirmou que até o fim de seu mandato, em 2025 (o Chile não permite a reeleição para mandatos sucessivos), não deve haver outra tentativa de aprovar uma nova Constituição; consequentemente, os chilenos, que em 2020 votaram em plebiscito pela adoção de uma nova carta magna, permanecerão por mais alguns anos com o texto da época da ditadura pinochetista, emendado desde que o país voltou à democracia.
A proposta de Constituição rejeitada em 2022 era uma tentativa de refundar o país do zero, totalmente enviesada do ponto de vista ideológico, já que a assembleia constituinte foi dominada pela esquerda – este foi o preço pago pelos eleitores de direita e centro-direita, que não se envolveram com o processo de escolha dos constituintes, com voto facultativo, e só perceberam seu erro tarde demais. No referendo, com votação obrigatória, esses chilenos se fizeram ouvir e, ao lado de outros moderados, derrubaram a carta por esmagadores 62% a 38%. O que se seguiu foi uma tentativa de construir um texto que fosse mais palatável à maior parte da sociedade do país.
Os chilenos não se deram uma nova Constituição no momento mais propício, imediatamente depois do fim da ditadura; quando finalmente decidiram por uma nova carta, fizeram-no em um momento de convulsão social
Um acordo com todas as forças políticas chilenas desenhou um novo processo constitucional diferente do anterior, que envolveu uma comissão de especialistas trabalhando ao lado de um Conselho Constitucional eleito – desta vez, com maioria direitista. O resultado foi um texto bem diferente do rejeitado em 2022: de caráter mais conservador, embora trouxesse previsões para tornar a representação política mais igualitária em termos de gênero, mencionasse explicitamente a proteção aos povos indígenas (o que a atual carta não faz), e propusesse uma participação maior do Estado na oferta de serviços públicos e previdência social.
Mesmo assim, a esquerda não aceitou a nova proposta de Constituição, criticando especialmente pontos como as regras rígidas contra a imigração ilegal e uma pequena mudança sobre a proteção à vida do nascituro que, segundo os críticos, poderia tornar o aborto proibido no país em qualquer caso. Ainda que esta proposta não tendesse tanto para a direita quanto a anterior pendia para a esquerda, os partidos socialistas, comunistas e verdes lideraram a campanha do “en contra”, saindo vencedores com 56% a 44% dos votos. José Antonio Kast, líder do Partido Republicano, de direita e que tinha a maior bancada no Conselho Constitucional, reconheceu a derrota. “Assumimos o fracasso de não termos conseguido convencer que a proposta era melhor que o texto atual”, disse, falando em “autocrítica”.
Ao contrário de outras nações que passaram por transições semelhantes – inclusive o Brasil –, os chilenos não se deram uma nova Constituição no momento mais propício, que era aquele imediatamente depois do fim da ditadura. Pior: quando finalmente decidiram por uma nova carta, fizeram-no em um momento de convulsão social, já que o plebiscito de 2020 foi parte do plano do então presidente Sebastián Piñera para conter o “estallido social”, os protestos de rua de 2019 que acabaram se tornando violentos. Desde então, as forças políticas de centro-esquerda e centro-direita que dividiram o poder no Chile desde a redemocratização perderam espaço e deram lugar à polarização que fez surgir nomes como Boric e Kast, um cenário que dificulta a busca de um consenso sem o qual o país seguirá andando em círculos sem jamais conseguir aquilo que se propôs a buscar.