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Uma das ferramentas de perseguição política preferidas de autocracias e ditaduras em geral é a “culpa por associação”. Se um certo desafeto não cometeu nada de ilegal ou ilícito, busca-se saber qual é seu círculo de relações, que locais frequenta... até se achar algum fiapo ao qual o perseguidor se agarra para levar adiante seu intento. Basta, assim, estar no local errado, na hora errada ou na companhia errada. É o que acaba de acontecer com um juiz que foi suspenso de suas funções pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por fazer parte de um grupo de WhatsApp e ter feito nele um comentário completamente lícito, sem nenhum tipo de manifestação que o tornasse suspeito ou inapto para a magistratura.
O corregedor-nacional de Justiça, ministro Luís Felipe Salomão – integrante do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e um dos cotados para assumir o lugar de Rosa Weber quando ela se aposentar do Supremo Tribunal Federal – foi acionado pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e outras entidades, que pediam a abertura de processo administrativo disciplinar contra o juiz Marlos Melek, que atua em uma Vara do Trabalho no estado do Paraná e foi um dos mentores da reforma trabalhista tão demonizada por Lula. Seu “crime”? Fazer parte do grupo de WhatsApp “Empresários & Política”, aquele mesmo em que uma conversa divulgada pela imprensa levou a uma operação abusiva ordenada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes contra oito empresários. Não apenas isso, dizem os “Juristas pela Democracia”; Melek foi muito além da mera presença no grupo, escrevendo uma única frase: “e a reportagem ainda foi ideológica, para variar”, em referência a uma reportagem intitulada “Empresários atacam Igreja Católica”, que relatava críticas de empresários ao padre Júlio Lancellotti.
Abertura de processo disciplinar no CNJ indica que Marlos Melek se tornou “criminoso por associação” ao aceitar a convivência com “más companhias” em um grupo de WhatsApp, mesmo sem endossar o que outros diziam
E isso é tudo. Melek, que fora aceito no grupo a convite de um empresário, para que compartilhasse os slides de uma apresentação feita em São Paulo, não defendeu golpe de Estado, não criticou instituições como o STF ou o Tribunal Superior Eleitoral, não incentivou nenhuma prática que pudesse ser considerada ilegal, não se manifestou sobre processos que poderia vir a julgar, não declarou preferência político-partidária, nada disso. Mesmo assim, os “Juristas pela Democracia” viram ali “práticas criminosas”, pois o juiz “interage com manifestações, em acordo com empresários que abertamente falam em golpe de Estado e compra de votos”. Um argumento totalmente falacioso, já que a única interação de Melek apontada pelos acusadores é uma crítica a uma reportagem, coincidentemente feita ao mesmo tempo em que outros dos cerca de 200 membros do grupo travavam os diálogos que desencadearam a perseguição comandada por Moraes. O próprio Melek, em sua defesa, ainda apontou outra mensagem por ele enviada ao grupo afirmando justamente que “nós, juízes, não podemos falar sobre decisões judiciais alheias, tampouco criticar juízes, desembargadores ou ministros. Por isso existe silêncio na magistratura”.
Que os tais “Juristas pela Democracia”, já bastante conhecidos por sua atuação sempre favorável a pautas e políticos de esquerda, queiram perseguir Melek apresentando uma queixa completamente infundada é algo que faz parte do jogo, ainda que já diga muito sobre o caráter de quem recorre a esse tipo de artimanha. Caberia ao corregedor simplesmente recusar o pedido, mas não: Salomão aceitou a queixa, em um voto repleto de citações de trechos da Lei Orgânica da Magistratura que Melek não desrespeitou em momento algum, já que não fez nenhum tipo de manifestação que indicasse atuação político-partidária. A acrobacia jurídica do corregedor consistiu em afirmar que o mero fato de ter concordado em participar do grupo, e permanecer nele após os “crimes de opinião” e “crimes de cogitação” cometidos por outros membros, já seria uma violação dos seus deveres funcionais. Em outras palavras, Melek se tornou “criminoso por associação” ao aceitar a convivência com “más companhias” em um grupo de WhatsApp.
“É de menor importância a quantidade de vezes em que ele [Melek] se manifestou”, continuou Salomão, negando a realidade. É óbvio que depõem em defesa do juiz não só a ínfima quantidade de mensagens enviadas por ele, mas também o seu teor: uma crítica legítima a uma reportagem jornalística, e uma defesa das regras que ordenam discrição completa ao magistrado! É tristemente irônico que uma das peças de jurisprudência usadas por Salomão em seu voto seja referente ao caso em que o ex-procurador Deltan Dallagnol foi punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público por um tuíte a respeito da possibilidade de Renan Calheiros ser eleito presidente do Senado, em 2019, outra ocasião em que a liberdade de expressão garantida pela lei (no caso de Dallagnol, a Lei Orgânica do Ministério Público) a agentes públicos foi atropelada em nome de conveniências políticas. Por fim, Salomão pediu não apenas a abertura do processo disciplinar, mas também o afastamento imediato de Melek, o que foi endossado por unanimidade pelos demais membros do CNJ.
Dallagnol foi punido por dizer verdades inconvenientes embora estivesse protegido pela liberdade de expressão, o que já faz de seu caso um exemplo evidente de arbítrio. Mas, ao afastar Melek e abrir contra ele um PAD, o CNJ vai além. Já não mais se trata do quê é dito, mas apenas de onde é dito e na companhia de quem. Não há nada minimamente controverso nas duas ocasiões em que o juiz enviou mensagens ao grupo em questão, e mesmo assim encontrou-se um motivo para uma perseguição que pode inviabilizar sua carreira. Assim, dá-se continuidade a um “expurgo branco”, sempre com um verniz de legalidade, que pretende afastar da vida pública todos os atores relevantes que não comungam de certa pauta político-ideológica.