“Ameaça à democracia” tem sido um termo amplamente usado nesta reta final do primeiro turno das eleições presidenciais. A não ser que ocorra uma grande reviravolta nos últimos dias antes do pleito de 7 de outubro, teremos um segundo turno entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), que concorre como preposto do ex-presidente e atual presidiário Lula. Por mais que o rótulo de antidemocrático seja mais frequentemente colado no capitão do Exército devido a suas declarações, é inegável que o partido de Haddad tem dado demonstrações inequívocas de falta de caráter democrático – não só pelo que diz, mas também pelo que fez e faz. No entanto, ainda há tempo para que ambos se comprometam de vez com a democracia e corrijam seus erros.
Causam inquietação, por exemplo, as posições de Bolsonaro sobre a ditadura militar. Podemos dizer que sua defesa entusiasmada do regime instalado em 1964 é sinônimo de grande ignorância histórica; que dedicar um voto na Câmara a um notório torturador, Carlos Alberto Brilhante Ustra, é inaceitável; e que debochar de vítimas de tortura, como Bolsonaro fez com Míriam Leitão, é desumano. O lado petista também tem contas a ajustar com a história daquele período, pois vários de seus líderes fizeram parte de grupos terroristas que buscavam a instalação de uma outra ditadura, de esquerda, mas sempre preferiram divulgar a mentira de que haviam “lutado pela democracia”.
E, passando das ditaduras do passado para o presente, é igualmente inaceitável que o petismo siga defendendo com unhas e dentes dois dos regimes mais sanguinários da América Latina, o cubano e o venezuelano (ao qual se acrescentou, mais recentemente, o nicaraguense), que o PT chegou até a bancar financeiramente, como no caso do pagamento triangulado aos cubanos do programa Mais Médicos, parte do qual é enviada diretamente aos ditadores caribenhos. Quando perguntado sobre a Venezuela, Haddad ou dá a entender que a culpa de o país viver uma ditadura é da oposição, ou descreve o país como engolido por um conflito, como se ambos os lados fossem iguais em legitimidade e meios armados, o que está muito longe da verdade. Nem Haddad nem o PT, até agora, dão mostras de querer romper com esse apoio a ditaduras com as quais o partido tem afinidade ideológica, sinal bastante preocupante para quem gostaria de ver no Palácio do Planalto um autêntico democrata.
O brasileiro não quer ouvir falar em golpe; quer a estabilidade democrática para trabalhar e criar sua família em paz
Mas o centro da questão está na postura dos candidatos sobre o atual processo eleitoral brasileiro e o futuro do Brasil. É ali que se separam os democratas dos autoritários, e onde estão os sinais mais preocupantes.
Os dois lados mostraram, de início, a intenção de deslegitimar o processo eleitoral no qual se inscreveram voluntariamente, mas houve um bom sinal vindo do lado de Bolsonaro. O candidato do PSL tinha repetido inúmeras vezes que não aceitaria qualquer resultado que não fosse a sua vitória, mas nunca entrou em detalhes sobre o que seria esse “não aceitar”. Em entrevista recente ao jornal O Globo, ele mudou o tom, dando a entender que se referia a um estado interior de inconformidade com um resultado negativo: “Sei que não tenho nada para fazer. O que quis dizer é que não iria, por exemplo, ligar para o Fernando Haddad depois e cumprimentá-lo por uma vitória”. É um começo, mas seria ainda melhor um compromisso mais enfático da parte de Bolsonaro com a aceitação das regras eleitorais e de uma eventual derrota, até mesmo em tom de orientação à militância.
O PT, de sua parte, adotou o bordão “eleição sem Lula é fraude” logo no início do ano e fez pouco da Justiça Eleitoral e da Lei da Ficha Limpa ao registrar a candidatura do ex-presidente ficha-suja; derrotado no TSE, submeteu-se ao veredito, mas não esconde de ninguém, como fez Gilberto Carvalho em entrevista à Gazeta do Povo, que o verdadeiro presidente do Brasil em caso de vitória petista seria Lula – Haddad seria apenas um laranja que permitiria ao país ser governado de dentro de uma cela, um verdadeiro escárnio. E talvez a declaração mais grave de toda essa campanha eleitoral tenha vindo de José Dirceu, que os petistas aclamam como “guerreiro do povo brasileiro” e que não deveria nem estar em liberdade, quanto mais dando entrevistas como a que deu ao jornal El País, dizendo que “dentro do país é uma questão de tempo pra gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição”. Ora, que maneiras há de “tomar o poder” sem “ganhar uma eleição”? O que Dirceu realmente quis dizer? A mera insinuação já basta para que estejamos diante de uma grave ameaça.
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Já se passou quase uma semana desde a publicação da entrevista, e as palavras de Dirceu – aquele mesmo que, muito tempo atrás, dissera que os tucanos “têm de apanhar nas ruas e nas urnas” – não foram desautorizadas nem por Haddad, nem por qualquer outro petista ilustre. Não chega a surpreender, já que o próprio chefão petista, quando ainda em liberdade, convocou o “exército de Stédile” em um evento no Rio de Janeiro, e a ex-presidente Dilma Rousseff chegou a ouvir impávida, no próprio Palácio do Planalto, o presidente da CUT falar em defendê-la “com armas nas mãos”. O PT nunca fez uma autocrítica em relação a nenhum desses episódios; quando um de seus quadros mais ilustres insinua um golpe, o partido precisa vir a público sem demora, pois cada segundo de silêncio reforça a impressão de que este é o plano da legenda, e não apenas um delírio isolado de um criminoso duplamente condenado.
Autocrítica, aliás, é o que se espera do PT também em relação aos dois maiores escândalos de corrupção da história do país, o mensalão e o petrolão. Eles não foram esquemas quaisquer, como tantos a que o brasileiro infelizmente se acostumou, em que o dinheiro público abastecia projetos de satisfação pessoal. Os ministros do STF que julgaram os dois casos não hesitaram em descrevê-los como verdadeiros ataques à democracia, pois se tratava de desvirtuar a independência dos poderes, submetendo o Congresso ao Executivo por meio da compra de apoio parlamentar, tudo com o objetivo de perpetuar o poder petista. Ainda hoje, sobre o mensalão, vigora a última versão de Lula, que passou do “fui enganado” para “o mensalão nunca existiu”. Sobre o petrolão, deixamos novamente com a palavra José Dirceu, desta vez em entrevista no Piauí: “A Lava Jato se transformou num dos maiores erros do país”.
O brasileiro não quer ouvir falar em golpe; quer a estabilidade democrática dentro da qual ele possa trabalhar e criar sua família em paz. Por isso os candidatos precisam vir a público assumir uma série de compromissos. Bolsonaro retificou seu discurso a respeito de sua reação à derrota, e ganhará a cada vez que essa postura for reafirmada, mas ainda lhe falta deixar mais claro que as convicções que tem sobre o valor da família não são incompatíveis com a defesa inequívoca da dignidade de todo brasileiro, independentemente de gênero, orientação sexual ou qualquer outro fator. Já Haddad e o PT, por sua vez, 1. terão de convencer o eleitor de que o Brasil não será governado de dentro de uma cela, por um corrupto condenado; 2. precisam romper com as ditaduras assassinas de Cuba, Venezuela e Nicarágua, comprometendo-se a não mais ajudá-las; 3. têm de reconhecer a legitimidade das instituições brasileiras, especialmente do Legislativo e do Judiciário, abandonando a mania de classificar tudo que os contraria (do impeachment de Dilma à condenação de Lula) como “golpe”; 4. precisam assumir seu papel nos megaescândalos de corrupção e fazer seu mea culpa, comprometendo-se com a continuação das investigações de esquemas que fraudaram a democracia brasileira e expulsando de suas fileiras aqueles condenados em última instância por crimes de corrupção, como prevê o próprio estatuto do partido; e, acima de tudo, 5. devem desqualificar seus figurões que falam em “tomar o poder” por vias não eleitorais. Assim saberemos quem realmente tem compromisso com a democracia e quem realmente é uma ameaça.
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