O brasileiro anda pouco satisfeito com a democracia no país, mas está comprometido com ela, é o que diz a edição mais recente da pesquisa A Cara da Democracia 2019, realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação. O estudo foi feito entre 8 e 16 de novembro do ano passado, com 2.009 pessoas em 151 municípios, e mostrou uma série de avanços em comparação com os dados de 2018, embora continue havendo pontos de preocupação.
A porcentagem de entrevistados que considerou a democracia “preferível a qualquer outra forma de governo” subiu de 56,2% em 2018 para 64,8% no ano passado, enquanto a parcela dos que consideram uma ditadura preferível “em algumas circunstâncias” caiu quase pela metade, de 21,1% para 11,2%. Os indiferentes tiveram ligeira subida, de 12,3% para 14,8%. Além disso, muito significativo é o fato de ter havido uma reversão no apoio a um golpe militar nos casos de criminalidade ou corrupção excessivas: em 2018 o grupo dos que considerariam aceitável o golpe nesses dois casos era maior que o dos opositores, mas no ano passado essa tolerância caiu para cerca de 40% – números ainda muito altos, diante dos quais só se pode esperar que continuem caindo ao longo dos próximos anos, à medida que se amplia a convicção a respeito do valor da democracia.
Mesmo o cidadão insatisfeito com a situação atual compreende que, apesar de todos os pesares, o sistema de freios e contrapesos e a separação de poderes são o melhor caminho para o país
O fato de quase dois terços dos brasileiros apoiar incondicionalmente a democracia, no entanto, não significa que a população esteja satisfeita com a maneira como ela vem sendo colocada em prática no país: quase dois terços dos entrevistados (65,3%) estão “insatisfeitos” ou “muito insatisfeitos” com o funcionamento da democracia; os “satisfeitos” ou “muito satisfeitos” são 32,9%. Mesmo assim, essa insatisfação já foi maior, pois em 2018 ela atingia oito em cada dez entrevistados. A desconfiança é generalizada: entre as instituições, o Congresso lidera a desconfiança – 50% dos entrevistados disseram “não confiar” no Legislativo federal –, seguido pelo presidente da República (44%) e pelo Supremo Tribunal Federal (42%).
A contradição, neste caso, é apenas aparente. Um cidadão pode estar insatisfeito com decisões da suprema corte, com a maneira como o Congresso vota projetos de lei ou com o programa levado a cabo pelo governo federal. Ele pode considerar que o país não caminha no rumo desejado, ou que pelo menos não o faz na velocidade necessária porque um ou mais poderes da República estão colocando empecilhos. Mas ele compreende que, apesar de todos os pesares, o sistema de freios e contrapesos e a separação de poderes, que só o Estado Democrático de Direito oferece, são o melhor caminho para o país. Que, por mais que as instituições estejam decepcionando muitos agora, é importante preservá-las, até porque seus ocupantes passam – e a ferramenta para essa renovação está no voto livre, e não na imposição da força.
Por certo, há uma série de desafios, especialmente no caso de um país que saiu há poucas décadas de um regime autoritário. Além dos números (embora decrescentes) de apoio a um golpe militar, continua a haver resquícios do sonho de um líder forte – a quantidade de entrevistados que consideram aceitável o presidente fechar o Congresso em caso de dificuldades quase dobrou entre 2018 e 2019, de 11,5% para 21,3%. A decepção com atitudes recentes – a pesquisa foi realizada após as exaustivas negociações da reforma da Previdência, a aprovação da lei de abuso de autoridade e os julgamentos do STF que anularam sentenças da Lava Jato e derrubaram a prisão após condenação em segunda instância – continua a alimentar a ideia de que, para fazer prevalecer a vontade da população, é possível cometer abusos. É uma convicção felizmente minoritária, mas que justifica um trabalho permanente junto à opinião pública sobre a importância da democracia.
A heterogeneidade faz parte da dinâmica democrática. As diferenças de perfil e de convicção ideológica entre os brasileiros se refletem nos seus representantes eleitos pelo povo e também nos membros das mais altas instâncias do Judiciário, escolhidos e aprovados por esses mesmos representantes. A democracia se constrói no embate institucional entre todos esses interesses e ideais; os resultados nunca hão de agradar a todos, e os descontentes também têm garantido o direito de se manifestar. Construir um país em bases democráticas exige essa consciência de que haverá vitórias e derrotas, de que a democracia não é uma “ditadura da maioria”, de que nem mesmo os ideais mais nobres justificam sua imposição pela força. Avançar desta maneira pode ser um processo mais lento, mas muito mais sólido; que o Brasil continue consolidando essa adesão à democracia que os números recentes estão mostrando.
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