Na iniciativa privada, seria impensável que toda uma equipe responsável por um projeto crucial para o futuro da empresa resolvesse sair de férias ou deixar de aparecer no escritório antes de concluir o trabalho – especialmente quando essa atitude contrariasse frontalmente as regras estabelecidas pela própria companhia. No entanto, neste mundo à parte que é Brasília e, especialmente o Congresso Nacional, os parlamentares já decidiram se conceder um novo “recesso branco”, mais um entre tantos que os brasileiros são obrigados a engolir ano sim, ano também.
Teoricamente, o recesso oficial do Congresso começa na próxima quinta-feira, dia 18. Isso significa que a Câmara e no Senado ainda teriam de realizar algumas poucas sessões, mas, com base no sempre muito conveniente argumento do “sempre foi assim”, na melhor das hipóteses haverá apenas sessões deliberativas, sem votação alguma. Com a convocação de algumas sessões extraordinárias – como a que estava prevista para começar às 18 horas desta segunda-feira, mas foi cancelada –, seria possível até mesmo cumprir os prazos regimentais para que a Câmara encerrasse a tramitação da reforma da Previdência na casa, sem recorrer a nenhum atalho. O texto passou pela primeira votação em plenário na semana passada e a nova redação, já com os destaques, foi aprovada pela Comissão Especial na madrugada do último sábado. Com isso, a PEC estaria pronta para a segunda e definitiva votação no plenário da Câmara. Mas essa etapa final foi jogada para 6 de agosto.
Apesar da norma constitucional que proíbe recessos sem que a LDO esteja aprovada, não existe punição alguma para o "recesso branco"
Que os deputados tenham preferido priorizar o seu descanso com algo tão importante por aprovar como a reforma da Previdência já é grave, mas não é só isso. O parágrafo 2.º do artigo 57 da Constituição afirma que “a sessão legislativa não será interrompida sem a aprovação do projeto de lei de diretrizes orçamentárias”. Ou seja, não poderia haver recesso parlamentar antes que Câmara e Senado, em sessão conjunta, aprovassem a LDO de 2020. E de fato não haverá, tecnicamente falando: o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), autorizou uma folga coletiva, mas informal.
Como o Legislativo não pode desrespeitar a Constituição tão abertamente, o truque encontrado para legalizar o “recesso branco” é o de manter as Casas funcionando formalmente, mas sem sessões; os parlamentares são dispensados de suas obrigações e, no jargão do Legislativo, liberados para “voltar às bases”. Curiosamente, em pelo menos um caso a “base” era a ilha caribenha de Aruba, para onde o senador Acir Gurgacz (PDT-RO) pretendia embarcar já neste dia 17; o passeio foi impedido pelo Supremo Tribunal Federal, já que Gurgacz cumpre pena em regime aberto por crimes contra o sistema financeiro.
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Situações como essa só são possíveis porque, apesar da norma constitucional, não existe punição alguma para os que a desrespeitam, seja abertamente, seja usando gambiarras regimentais como a ilusão de que o Congresso continua funcionando, ainda que sem sessão alguma. Ou seja, é preciso contar apenas com o senso de responsabilidade dos parlamentares, muitos dos quais devem tê-lo gasto todo na semana passada, quando os deputados avançaram noites e madrugadas, permanecendo em Brasília até mesmo na sexta-feira para votar os destaques à reforma da Previdência. Lamentável que aquela postura, condizente com as necessidades do país e a importância da matéria, não tenha se repetido para esta semana, levando a nação a esperar mais algumas semanas preciosas pelo desfecho de uma reforma fundamental para o Brasil e dando a entender que, para os parlamentares, as exigências constitucionais de pouco servem, podendo ser burladas quando for conveniente.
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