A solução do Tribunal Supremo de Justiça venezuelano para manter Hugo Chávez na presidência exige as maiores acrobacias jurídicas possíveis e, como se não bastasse, com apoio brasileiro
Queiram ou não os bolivarianos, o mandato do presidente venezuelano, Hugo Chávez, terminou ontem, quando o caudilho deveria iniciar um novo período de seis anos no governo mas está impossibilitado de fazê-lo, internado em Cuba, onde luta contra um câncer e as complicações de uma cirurgia, sem que seus compatriotas tenham a menor ideia do real estado de saúde do governante. Diz o artigo 231 da Constituição venezuelana que o dia da posse é 10 de janeiro; a assunção ao posto de chefe do Executivo se dá pelo juramento diante da Assembleia Nacional, o Legislativo do país. Se isso não for possível, o juramento seria feito diante do Tribunal Supremo de Justiça, a principal corte venezuelana. Pois foi justamente esta corte que decidiu atropelar a lei suprema do país ao, na prática, estender indefinidamente o mandato chavista encerrado ontem, mantendo o vice-presidente Nicolás Maduro à frente do país.
O artigo 234 da mesma Constituição trata das "ausências temporais" do presidente, afirmando que o vice-presidente assume o posto por 90 dias, prorrogáveis por mais 90, se necessário. Essa era a situação de Maduro até ontem, quando terminou o mandato de Chávez como presidente e o de Maduro como vice. Assim, o artigo 234 já não se aplica mais só poderia valer se Chávez tivesse tomado posse ontem, o que não ocorreu. O impasse se dá porque a Constituição até prevê o caso de um presidente eleito que esteja impossibilitado de assumir o cargo, mas o artigo 233 só trata de "ausências absolutas", causadas por morte, renúncia, destituição pelo TSJ ou incapacidade permanente física ou mental atestada por junta médica, entre outras circunstâncias; nesses casos, o presidente do Legislativo assume a Presidência temporariamente, com novas eleições ocorrendo em 30 dias.
Até onde se sabe (e o governo chavista faz de tudo para que se saiba pouco), o caso de Chávez não é de "ausência absoluta", o TSJ não vê necessidade de que o caudilho seja avaliado por uma junta médica que declare uma eventual incapacidade permanente, e a Constituição não previu a situação de impossibilidade de tomar posse por causas "temporárias", que não configurassem a ausência absoluta. Diante do vácuo institucional, o TSJ, evocando a "continuidade administrativa", adotou a interpretação de que o novo mandato de Chávez começava ontem, mesmo sem a posse (que seria mera formalidade) ou juramento diante do tribunal (que não precisaria ser feito necessariamente em 10 de janeiro). Justamente a pior solução possível, a que exige as maiores acrobacias jurídicas como justificativa. Mas é a solução que mais convém a Chávez, que tem nas mãos o Legislativo e o Judiciário, como apontou a ex-integrante do TSJ Blanca Mármol de León, em entrevista publicada ontem na Gazeta do Povo. Segundo ela, o correto seria empossar Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional, em vez de manter Maduro no comando do país.
A situação da Venezuela permite tirar outras conclusões sobre a dinâmica da política sul-americana. Afinal, ambiguidade por ambiguidade, a Constituição paraguaia também não pode ser considerada um primor de exatidão, mas a destituição do ex-presidente Fernando Lugo, no ano passado, se deu de acordo com as regras ali estabelecidas (ainda que a velocidade do processo tenha sido questionável). Mesmo assim, o Brasil e seus parceiros do Mercosul viram no afastamento de Lugo uma quebra da cláusula democrática e suspenderam o Paraguai, abrindo caminho justamente para a entrada da Venezuela no bloco, em uma manobra claramente ilegal.
Falta, então, coerência nos critérios. Ou as respectivas constituições foram seguidas tanto no Paraguai quanto na Venezuela, ou não o foram em nenhum dos casos. Mas apenas o Paraguai foi punido, enquanto o autogolpe chavista conta com apoio do Brasil apoio, aliás, manifestado pelo assessor especial Marco Aurélio Garcia, e não pelo Itamaraty, de onde normalmente viriam manifestações desse tipo. A resposta é simples, mas preocupante: enquanto no caso paraguaio o parceiro ideológico de Dilma era o lado prejudicado, na manobra chavista ele é o beneficiado. O governo brasileiro não deveria ter se intrometido nos assuntos internos do vizinho. Mas, já que o fez, que pelo menos fique registrado que, mais uma vez, as cumplicidades ideológicas falaram mais alto que o respeito à lei.