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Editorial

Contrabando absurdo

O que a tributação de empresas brasileiras no exterior tem a ver com planos de saúde que desrespeitam a lei? Absolutamente nada. Mas isso não foi obstáculo para que os deputados federais usassem uma medida provisória sobre tributação para inserir nela um artigo que oferece uma mãozinha muito amiga para as operadoras de saúde suplementar. O simples recurso do "contrabando", pelo qual medidas provisórias se veem carregadas de penduricalhos sem relação alguma com o assunto original, já é suficientemente absurdo. Mas ainda pior é a malandragem que a Câmara inseriu na Medida Provisória 627/2013 e aprovou em plenário em 1.º de abril.

Por mais surreal que seja o teor do artigo 101 do texto final, relatado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e apesar do dia em que a MP foi votada na Câmara, não é mentira: a MP desobriga os planos de saúde a pagar todas as multas que receber por infrações cometidas. Se em um semestre-calendário a operadora cometer duas infrações, pagará apenas uma, a maior delas; se levar de duas a 50 multas, pagará apenas duas; no caso de 51 a 100 infrações, terá de pagar apenas por quatro infrações; se cometer de 101 a 250 infrações, pagará oito multas; se as infrações forem entre 251 e 500, terá de pagar 12 multas; se levar de 501 a mil multas, pagará apenas 16 delas; e, por fim, caso cometa mais de mil infrações, terá de pagar meras 20 multas.

E ainda há interpretações segundo as quais a mudança incluiria as multas já aplicadas, em uma espécie de anistia que livraria os planos de saúde de pagar R$ 2 bilhões – o Ministério da Saúde está entre os que entendem que a medida seria retroativa. Já o deputado Cunha jura de pés juntos que não existe retroatividade, e que o teor do artigo 101 foi discutido com a Casa Civil, o Ministério da Fazenda e a Advocacia-Geral da União – ou seja, o governo federal não só sabia da emenda como teria dado sua aprovação.

Mesmo que Cunha tenha razão e não haja perdão das multas já concedidas, o que os deputados fizeram foi dar aos planos de saúde um passaporte para a impunidade. Se as operadoras podem desrespeitar a lei 1.001 vezes em seis meses e têm perdoadas 981 dessas infrações, resta muito evidente que estamos diante de um absurdo sem tamanho. O pobre paciente brasileiro que, na primeira chance, passa a contratar um plano de saúde para escapar do combalido sistema público fica completamente desamparado quando a empresa à qual confia seu cuidado e de sua família se vê livre para descumprir suas obrigações sem responder por isso. Não é à toa que as entidades de defesa do consumidor manifestaram sua oposição à emenda, ressaltando não apenas o absurdo da situação em que um plano ganha carta branca para desrespeitar a lei, mas o fato de que a impunidade pode levar o cliente a deixar de registrar queixas contra as operadoras, por saber que muito provavelmente não haverá punição.

A MP ainda precisa passar pelo Senado e a tendência inicial, segundo o relator do texto na Casa, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), era de manter a emenda na íntegra, perpetuando a impunidade. Ele argumentou que, se houvesse mudanças, a MP teria de voltar à Câmara para ser votada de novo e acabaria perdendo a validade. Depois da repercussão negativa (e provavelmente por causa dela), Jucá mudou de discurso e passou a falar em retirar o artigo da MP (se os outros 500 contrabandos permanecerão, ele já não disse). O Ministério da Saúde também se declarou contrário ao texto, e o próprio Eduardo Cunha, depois de dizer que o Executivo conhecia e aprovava a medida, afirmou em nota que Dilma Rousseff vetaria o artigo 101 caso ele chegasse às suas mãos para a sanção da MP. Ainda que o próprio Congresso conserte o erro, removendo a emenda, o caso da MP 627 é o exemplo acabado que explica por que os brasileiros não creem na classe política, que não pensa duas vezes antes de agir para desmoralizar a si própria.

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