Grandes reformas macroeconômicas podem, ao mesmo tempo, ser consensuais e exigir uma boa dose de coragem. Ninguém discorda de que elas são necessárias, mas, quando chega o momento de realizá-las, sempre haverá quem se veja prejudicado pelas novas regras. Foi assim com a reforma da Previdência, e é assim até mesmo com a reforma tributária: todos concordam que o sistema tributário brasileiro é enlouquecedor e tem de ser simplificado, mas cada proposta muda a tributação sobre certos setores, e quem passar a pagar mais impostos certamente reclamará. E também é o caso da reforma administrativa, que encontra forte oposição tanto da esquerda fã do Estado grande e inchado quanto do corporativismo dos setores que serão afetados pelas novas regras propostas pelo governo.
No entanto, interlocutores ouvidos pela Gazeta do Povo no Planalto, no Ministério da Economia e no Congresso afirmam que o governo poderia estar “tirando o pé” na reforma administrativa e não estaria interessado em uma tramitação veloz, deixando a prioridade para outros assuntos, como a reforma tributária, marcos legais ou privatizações. A razão para isto é a proximidade das eleições de 2022 e a preocupação com um possível desgaste do governo com o funcionalismo público, tradicional base eleitoral do presidente Jair Bolsonaro e de vários parlamentares. “Há um desejo do governo em aprová-la [a reforma administrativa], mas não agora, porque atrapalharia a reeleição do Bolsonaro”, disse um deputado da base aliada. “Se ele torna a reforma administrativa uma prioridade, aí sim que ele complica de vez as chances de reeleição”, emendou um assessor do Planalto.
A reforma administrativa é algo que simplesmente tem de ser feito. O funcionalismo de estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul já sofreu na pele as consequências de governos que resistem a colocar as contas em ordem
É evidente que ninguém quer se desgastar com sua base eleitoral, e que a esquerda aguarda ansiosamente por algum passo em falso do governo para reconquistar os servidores, prometendo-lhes tudo o que costumeiramente não é capaz de entregar – ao menos, não sem quebrar o país, como fez em 2015. Mas há dois bons motivos para que o governo, e Bolsonaro pessoalmente, se empenhem na aprovação da reforma administrativa.
O primeiro deles é o mais evidente: não há mais como adiar uma racionalização do gasto público com o funcionalismo. Não existe ajuste fiscal digno do nome sem mexer nas maiores rubricas do Orçamento e, se a reforma da Previdência atacou o problema pelo lado dos inativos (embora pudesse ter sido ainda mais eficiente neste campo), agora é preciso também enfrentar o problema dos servidores da ativa. É preciso lembrar, aliás, que os atuais servidores não serão afetados pela reforma se for mantido o projeto atual, o que já deveria servir para apaziguar os ânimos entre a categoria.
Em resumo, a reforma administrativa é algo que simplesmente tem de ser feito. O funcionalismo de estados como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul já sofreu na pele as consequências de governos que resistem a colocar as contas em ordem, e é este cenário de caos que é preciso evitar. Um Estado inchado e afundado em dívidas não é capaz nem mesmo de pagar seus salários em dia. Um Estado que administra sua folha com racionalidade traz confiança, que se reflete em investimentos, crescimento econômico, arrecadação e mais margem para investir e para contratar quando necessário.
Além disso, discordamos da afirmação de que, no momento, os ônus de aprovar a reforma são maiores que os bônus, e aqui reside o segundo motivo: se o país realizar o quanto antes uma boa mudança da estrutura do Estado, o Brasil inteiro sairá beneficiado com a reconquista da credibilidade internacional. As contas públicas estão devastadas depois dos gastos com o combate à Covid. Neste momento, investidores têm sérias dúvidas sobre a conveniência de colocar dinheiro no Brasil por não terem um sinal claro de que o país agirá para reverter a espiral de crescimento da dívida pública. O câmbio segue pressionado e a inflação avança, o que deve acelerar o ciclo de alta dos juros, prejudicando a retomada econômica pós-pandemia. Ações de ajuste fiscal como a reforma administrativa interrompem este círculo vicioso: o Brasil ganha credibilidade quanto à sua saúde fiscal e atrai investimentos que geram emprego e renda. Em um cenário como este, todos saem ganhando e o Brasil chega a 2022 com uma economia revigorada.
Nenhuma reforma passa sem deixar insatisfeitos. A reforma da Previdência apertou as regras para praticamente todos os brasileiros, mas ela precisava ser feita, pois a alternativa era o colapso do sistema brasileiro de aposentadorias. E foi feita, inclusive com apoio popular, demonstrado em manifestações de rua. Com a reforma administrativa ocorre o mesmo: ela pode irritar o funcionalismo – embora, lembramos mais uma vez, as regras propostas não se apliquem aos atuais servidores –, mas é uma necessidade urgente do país. Um eventual desgaste entre o funcionalismo será largamente compensado pelos efeitos benéficos desta reforma para todo o Brasil: no médio e longo prazo, com a redução dos gastos do governo; mas também no curto prazo, com a sinalização de compromisso com o ajuste fiscal e a consequente atração de investimento. Entre ceder ao corporativismo e deixar um legado positivo para um país inteiro, a escolha é óbvia. Basta reconhecê-la e colocá-la em prática.
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