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Mais uma demonstração do pouco cuidado que governo e Congresso demonstram com o gasto público ocorreu nesta sexta-feira, quando o governo federal anunciou o bloqueio de R$ 6,7 bilhões na execução do orçamento deste ano; o valor foi maior que os R$ 5 bilhões inicialmente estimados, e se soma aos R$ 8,7 bilhões já bloqueados ao longo de 2022 em duas outras ocasiões. O objetivo dos cortes é cumprir o teto de gastos, a regra que limita o aumento da despesa governamental usando a inflação como critério de correção. E, diante dos novos contingenciamentos, retorna a tentação de atacar aquele que é o principal instrumento de ajuste fiscal adotado pelo país desde o desastre das gestões petistas, que não apenas gastaram como se não houvesse amanhã, mas ainda se empenharam em maquiar o que faziam por meio da “contabilidade criativa”.
Executivo e Legislativo já haviam trabalhado para abrir espaço no orçamento de 2022 quando, no fim do ano passado, aprovaram a PEC dos Precatórios, que, além de dar um calote em parte das dívidas reconhecidas judicialmente, postergando o seu pagamento, alterou a regra de cálculo do reajuste do teto, deixando-a mais favorável ao governo; com isso, foi criado um espaço adicional de R$ 113 bilhões no orçamento deste ano, segundo dados de janeiro da Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado. Se mesmo assim o cobertor já está tão curto na metade do ano, algo vai muito mal na forma como governo e Congresso lidam com o dinheiro do contribuinte.
Contingenciamentos não seriam necessários se houvesse empenho no ajuste fiscal, reformas macroeconômicas, orçamento desengessado e o fim do péssimo hábito de se apropriar do dinheiro do contribuinte usando mecanismos imorais
Os problemas vão desde questões estruturais até circunstâncias bem específicas surgidas nos últimos anos. O teto de gastos era uma ferramenta importante de ajuste fiscal, mas não tinha como funcionar sozinho; ele dependia de outras reformas que melhorassem o orçamento, seja atacando a despesa, seja reduzindo seu engessamento. Disso tudo, apenas a reforma da Previdência saiu do papel, e mesmo assim em uma versão aguada. A reforma administrativa foi abandonada, e os “três Ds” (desindexar, desobrigar e desvincular) continuam a ser apenas um sonho. Para piorar, em vez de a classe política abraçar de vez o ajuste fiscal, continuou criando mais despesas – em alguns casos, absurdamente imorais, como o fundão eleitoral e as emendas de relator, que engolem dezenas de bilhões de reais; em outros, fruto da fé na geração espontânea de dinheiro público, como a obrigação de que o governo federal repasse quase R$ 4 bilhões a estados e municípios para gastos com cultura, por meio da Lei Paulo Gustavo, cujo veto presidencial o Congresso derrubou.
Como a tentação gastadora parece ser irresistível – independentemente da orientação política do governo de turno –, mas a abolição pura e simples do teto de gastos enviaria uma mensagem desastrosa para o mercado financeiro, a opção mais recente foi a de contornar a regra, determinando que novas despesas simplesmente não entrem no teto, como ocorreu na tramitação da PEC dos Benefícios. Esse processo de desmoralização – “abolição tácita” talvez descreva melhor o que está ocorrendo – não passa despercebido, com a curva de juros futuros em alta, indicando que o investidor pede um retorno cada vez maior para emprestar seu dinheiro ao governo, em sinal de desconfiança. Mais surpreendente, talvez, sejam as declarações que tentam relativizar a gastança apoiando-se na arrecadação recorde que o governo tem registrado neste ano. “Nós estamos repassando os excessos de arrecadação, os extraordinários resultados dos dividendos das empresas estatais. Nós estamos compartilhando com a população”, afirmou o ministro Paulo Guedes em 12 de julho.
Esta, no entanto, é uma tentativa de transformar vício em virtude. Um dos méritos do teto de gastos é justamente o de impedir que o governo aproveite bons momentos para aumentar a despesa, frequentemente criando gastos permanentes quando as circunstâncias que trouxeram mais dinheiro aos cofres públicos são temporárias – ninguém garante, por exemplo, que a arrecadação seguirá batendo recordes e que as estatais continuarão a pagar dividendos nos níveis atuais. Aproveitar a entrada de dinheiro para elevar o gasto foi exatamente o que o petismo fez após os anos de crescimento forte no fim do segundo mandato Lula, e o resultado não tardou a vir, com a maior recessão da história do país. O teto de gastos garante que qualquer recurso adicional seja destinado não a novas despesas, mas à geração de superávits e à redução da dívida pública, que no caso brasileiro é bem maior que a média dos países emergentes em termos de relação entre dívida e PIB. Haveria muito a “compartilhar com a população” sem fundão eleitoral ou emendas de relator, por exemplo, dispensando a necessidade de contornar o teto.
Contingenciamentos não seriam necessários se Executivo e Legislativo se empenhassem na realização do ajuste fiscal, complementando o teto de gastos com as outras reformas macroeconômicas que racionalizem o gasto público, desengessando o orçamento e abandonando o péssimo hábito de se apropriar do dinheiro do contribuinte usando mecanismos imorais – aqui, podemos também incluir o Judiciário, com seus auxílios e demais penduricalhos. A bem da verdade, se houvesse preocupação sincera com o gasto público, talvez nem mesmo o teto de gastos fosse necessário. O que temos, no entanto, é o exato oposto, que coloca em risco a pouca saúde fiscal de que o país ainda goza.
O editorial foi atualizado com a informação do corte de R$ 6,7 bilhões, anunciado nesta sexta-feira (22).
Atualizado em 22/07/2022 às 23:19