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Editorial

Os frenólogos do século 21

Juiz determina USP matricular jovem que teve sua matrícula cancelada após banca avaliadora não considerá-lo pardo.
Cerca de 200 estudantes tiveram a autodeclaração como "pardo" negada pela USP. (Foto: Divulgação/Faculdade de Direito da USP)

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No fim do século 18, o alemão Franz Joseph Gall formulou uma teoria segundo a qual seria possível identificar traços psicológicos de um indivíduo analisando-se as características de seu crânio – pouco menos de um século depois, Cesare Lombroso foi mais longe, pretendendo estabelecer ligação entre características cranianas e a propensão de uma pessoa ao comportamento criminoso. Hoje a frenologia está totalmente desacreditada como pseudociência, mas o espírito que a moveu segue vivo, atualizando-se de acordo com as demandas do momento. Sua expressão mais atual, ao menos no Brasil, é a das eufemisticamente chamadas “bancas de heteroidentificação”, que na prática são tribunais raciais destinados a decidir se um vestibulando é suficientemente negro para fazer jus às cotas oferecidas por universidades Brasil afora.

Tais bancas chamaram a atenção nacionalmente nos últimos dias por dois casos, ambos ocorridos na Universidade de São Paulo (USP). Os estudantes Alison dos Santos Rodrigues e Glauco Dalalio do Livramento tiveram suas matrículas rejeitadas nos cursos de Medicina e Direito, respectivamente, por decisão da banca avaliadora. Ambos foram aprovados no Provão Paulista, um processo seletivo para alunos de escolas públicas do estado de São Paulo e que tem reserva de vagas para estudantes que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas. Alison só foi avisado da exclusão no primeiro dia de aula. Ambos acionaram a Justiça, e Glauco já conseguiu uma decisão favorável.

Não seria nada sensato responder ao subjetivismo atual com o estabelecimento de critérios como tamanhos mínimos ou máximos aceitáveis para lábios ou narizes, na tentativa de estabelecer numericamente o que seria um “fenótipo de pessoa negra” ou parda

Um detalhe importante em ambos os casos está no fato de a banca ter tomado sua decisão recorrendo apenas à observação de uma fotografia e a uma videoconferência com o vestibulando, embora seja bastante evidente que qualquer mudança de iluminação em um ambiente pode resultar em uma imagem que torne mais clara ou mais escura a pele de uma pessoa. Agora, o reitor da USP promete que a instituição bancará as viagens dos aprovados até São Paulo, para que eles sejam avaliados pessoalmente, como se esse fosse o verdadeiro problema, e não o caráter totalmente arbitrário de tais bancas de avaliação. No caso de Glauco, a comissão se limitou a dizer que suas características físicas, como “boca e lábios afilados” e cabelo liso, não correspondem ao “fenótipo de pessoa negra”.

Não há soluções simples para a questão, e não seria nada sensato responder ao subjetivismo atual com o estabelecimento de critérios como tamanhos mínimos ou máximos aceitáveis para lábios ou narizes, na tentativa de estabelecer numericamente o que seria um “fenótipo de pessoa negra” ou parda. Isso apenas aumentaria o absurdo da situação, em um país no qual a miscigenação é a regra – por mais que isso desagrade certas alas do movimento negro que tratam essa miscigenação como um “genocídio”, que buscaria a eliminação da população preta através de um suposto “embranquecimento”. O fato é que a controvérsia ressalta as limitações do modelo de cotas raciais em contraposição a outra ação afirmativa, a das cotas sociais – esta, sim, facilmente aplicável pelo uso de critérios inquestionavelmente objetivos, ao beneficiar candidatos egressos de escola pública.

As cotas, raciais ou sociais, surgiram como resposta à patente desigualdade no acesso ao ensino superior – especialmente o público – no Brasil, e a Gazeta do Povo reconhece a legitimidade das ações afirmativas quando estão em sintonia com a finalidade das instituições que adotam tais medidas. No entanto, as cotas deveriam ser uma política temporária para garantir o acesso de uma população que historicamente foi privada de um lugar em instituições de excelência, enquanto se buscaria corrigir o verdadeiro problema, a baixa qualidade do ensino médio público. Repetindo um velho vício brasileiro, o paliativo se tornou permanente enquanto pouco se faz para dar aos estudantes de escola pública, independentemente de sua cor de pele, boas condições de enfrentar os demais vestibulandos por uma vaga na universidade.

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