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CFM foi à Justiça contra cotas em residência médica.
CFM foi à Justiça contra cotas em residência médica.| Foto: ParentingUpstream/Pixabay

Atribui-se a Milton Friedman a certeira frase “Nada é tão permanente quanto um programa temporário do governo”. Não só aquilo que deveria ser provisório se torna permanente, como também tende a se expandir. O caso das cotas no ensino superior, uma política de ação afirmativa que, mesmo quando justificável, deveria ter duração definida e jamais ser encarada como o principal meio de corrigir as deficiências observadas, ilustra bem esta situação. As universidades federais começaram a adotar cotas para estudantes negros e para egressos de escolas públicas durante a primeira passagem de Lula pelo Planalto; com o PT de volta ao governo federal, seria esperado que as políticas de matiz identitário fossem reforçadas – mesmo que isso signifique um salto, da correção de velhas injustiças para o cometimento de novas injustiças.

A Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), criada no primeiro mandato de Dilma Rousseff e vinculada ao Ministério da Educação, e que administra dezenas de hospitais universitários federais, realizou no último dia 20 de outubro um Exame Nacional de Residência (Enare), pelo qual 80 mil inscritos disputam 4,8 mil vagas de residência médica e 3,8 mil vagas de residência em outras áreas profissionais da saúde, em 163 instituições. O edital, no entanto, reserva 30% das vagas para negros, indígenas, quilombolas e portadores de necessidades especiais. O Conselho Federal de Medicina (CFM), então, resolveu buscar a Justiça para anular a reserva de vagas para determinados grupos, alegando que não há motivo para que se continue a oferecer ações afirmativas quando já se estabeleceu a “paridade de armas” entre os candidatos a uma residência médica.

Todos os interessados em uma vaga de residente no concurso da Ebserh já estão em igualdade de condições. Uma segunda reserva de vagas já não é correção de injustiças, mas favorecimento

De fato, a argumentação faz todo o sentido. Qualquer desvantagem que alguém tivesse tido ao longo do ensino fundamental e médio foi sanada por meio das cotas nos processos seletivos – vestibulares ou o Enem – para entrar no curso de Medicina. A partir dali, todos receberam a mesmíssima formação, e o registro nos respectivos Conselhos Regionais de Medicina atesta que aquele indivíduo está apto a exercer a profissão. Isso significa que todos os interessados em uma vaga de residente no concurso da Ebserh já estão em igualdade de condições. Uma segunda reserva de vagas, depois daquela verificada no momento de entrar na universidade, cria uma “discriminação reversa”, um “privilégio” que “fomentará a ideia de vantagens injustificáveis dentro da classe médica”, afirma o CFM.

Fora do âmbito das universidades federais, uma outra instituição pública foi ainda mais longe. A Universidade Estadual de Londrina, no Paraná, lançou no fim de outubro um processo seletivo para residência médica em que quatro especialidades (Oftalmologia, Dermatologia, Psiquiatria e Cirurgia do Aparelho Digestivo) tinham todas as suas vagas reservadas para negros, indígenas e portadores de necessidades especiais. Os editais foram cancelados pela UEL, que colocou a culpa em um algoritmo desenvolvido para determinar o número de vagas destinadas às ações afirmativas – sinal de que, antes de ser publicado, o edital não chegou a ser conferido por ninguém ou, se chegou, o responsável não viu ou não quis ver nada de errado. Chama a atenção, ainda, o fato de o tal algoritmo ter sido desenhado para seguir recomendações do Ministério Público e da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), do MEC, para que 30% das vagas de residentes fossem preenchidas por cotas, provocando os efeitos já apontados pelo CFM.

A ação tramita na primeira instância da Justiça Federal em Brasília, e não será surpresa que a controvérsia chegue ao STF, que já foi chamado a decidir sobre leis de ações afirmativas no passado. Foram esses julgamentos que a Ebserh alegou em seu favor ao dizer que a corte suprema já validou o “critério étnico-racial na seleção para ingresso no ensino superior público”. Residências médicas, no entanto, não são “ingresso no ensino superior público”; tampouco são iguais a cargos na administração pública, cujo preenchimento por meio de concurso também inclui cotas desde a aprovação de uma lei em 2014. Todos os que se formaram em uma faculdade de Medicina e conseguiram seu registro no CFM estão em condições de igualdade para disputar uma vaga de residente; que, uma vez tendo sido obtida essa igualdade, seja o “mérito acadêmico de conhecimento” a dar a palavra final.

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