No exato momento em que vários países comemoravam a queda drástica no número de mortes à medida que parcela significativa da população já completava seu ciclo vacinal de duas doses, com a vida retornando ao normal em vários aspectos e fronteiras sendo reabertas, o mundo se vê às voltas com uma nova variante do coronavírus. A B.1.1.529, chamada “ômicron”, foi primeiramente identificada na África do Sul, o que levou vários países – inclusive o Brasil – a proibir voos provenientes de nações do sul do continente africano. A medida, no entanto, já vem com certo atraso, até pela demora natural em se constatar que se trata de uma nova variante: casos de Covid-19 provocados pela nova cepa já foram identificados em vários países europeus; a essa altura, a variante ômicron já deve estar circulando por outros continentes.
O que se sabe de certo sobre a variante ômicron é que ela traz uma grande quantidade de mutações, inclusive na proteína Spike, responsável pela infecção das células humanas. Tudo o mais – se ela é mais transmissível, mais prejudicial ao organismo ou capaz de driblar a imunização trazida pela vacina ou por contaminação anterior – depende de análises posteriores e dados dos pacientes contaminados, e as possibilidades são várias. Enquanto não há informações definitivas sobre como a nova cepa age em comparação com as variantes já conhecidas, a regra é a cautela.
Se o caso sul-africano não valida teorias conspiratórias sobre vacinas provocando mutações, ele mostra claramente os efeitos da desigualdade global no acesso aos imunizantes
O aparecimento de mutações não tem absolutamente nada de extraordinário; é assim que a natureza funciona. Mas há circunstâncias que facilitam este processo – foi o que ocorreu em Manaus, em que medidas de distanciamento foram ignoradas pela população durante um bom tempo, permitindo que o vírus circulasse mais livremente e dando origem à variante P1 ou gama. Como a ômicron é a primeira variante a causar enorme preocupação internacional ao mesmo tempo em que vários países apresentam cobertura vacinal robusta (a delta, por exemplo, surgiu ainda antes do início da vacinação), acabou “ressuscitada” uma entrevista do prêmio Nobel de Medicina Luc Montagnier em que ele associa diretamente a difusão da vacinação ao surgimento de novas variantes. Se a tese em si já é incorreta – pois as mutações surgem quando um vírus se espalha sem obstáculos, não devido às vacinas –, mesmo sua aplicação ao caso concreto da ômicron não se sustenta, pois a África do Sul tem menos de um quarto de sua população vacinada com duas doses, segundo a plataforma Our World in Data, da Universidade de Oxford. Mesmo nas províncias com maior cobertura vacinal, a proporção dos totalmente imunizados não chega a 45%. Ou seja, o Sars-CoV-2 ainda encontra campo aberto para se espalhar.
Mas, se o caso sul-africano não valida teorias conspiratórias sobre vacinas provocando mutações, ele mostra claramente os efeitos da desigualdade global no acesso aos imunizantes. O Marrocos é o único país africano com mais de 100 doses (incluindo primeira dose, segunda dose e eventuais reforços) aplicadas para cada 100 habitantes; a Tunísia está se aproximando desse patamar, mas todos os outros estão muito aquém – praticamente toda a África Central está na faixa entre zero e 20 doses para cada 100 habitantes, ainda segundo a plataforma Our World in Data. Por este prisma, não chega a surpreender que a primeira mutação de relevância mundial a surgir com a vacinação em curso tenha surgido em uma nação com cobertura baixa, o que só reforça a necessidade urgente de cooperação internacional para que as nações mais pobres tenham acesso à vacina o quanto antes.
O surgimento da variante ômicron vem no momento exato em que o Brasil discute a realização do carnaval de 2022. “Por mim, não teria carnaval. Mas tem um detalhe, quem decide não sou eu. Segundo o STF, quem decide são os governadores e prefeitos”, afirmou o presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira, dia 25. Por mais que um cancelamento tenha seu efeito financeiro sobre setores como o turismo, um evento que, por sua própria natureza, facilita a aglomeração já teria de ser no mínimo repensado mesmo com a melhora dos indicadores de novos casos e mortes, já que a pandemia ainda não está totalmente vencida; se as conclusões sobre a variante ômicron não forem animadoras, seguir adiante com as festividades poderá ser uma irresponsabilidade fatal.