Se a restauração da democracia plena no Brasil passa pela contenção dos superpoderes autoatribuídos pelos tribunais superiores – especialmente o Supremo Tribunal Federal –, que hoje extrapolam completamente o que dizem a lei e os códigos processuais para erodir os direitos e garantias individuais, poucas iniciativas hoje podem ser mais importantes que uma tentativa de usar um espaço privilegiado para lançar luz sobre as arbitrariedades cometidas. E está nas mãos do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, a possibilidade de contribuir para esse avanço.
Em novembro de 2023, a oposição protocolou o requerimento de abertura da CPI do Abuso de Autoridade, que cumpre todos os requisitos constitucionais para o seu funcionamento: número mínimo de assinaturas de parlamentares, duração definida e objeto específico de investigação. O requerimento, de autoria do deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), menciona explicitamente o inquérito das fake news e a Resolução 23.714/22 do Tribunal Superior Eleitoral, cuja combinação “está resultando em uma série de atos contrários aos direitos individuais mais sagrados e invioláveis tutelados em nossa Carta Magna”.
A CPI do Abuso de Autoridade não só poderia como deveria estar entre as cinco primeiras a funcionar na Câmara dos Deputados em 2024
Se as exigências da Constituição para a abertura de uma CPI estão cumpridas, o único impedimento possível para a abertura da CPI de Abuso de Autoridade seria regimental, já que a Câmara só pode ter cinco CPIs em funcionamento simultaneamente. No entanto, não há nenhuma comissão desse gênero atualmente em andamento. O que há são outros pedidos – os deputados também querem investigar supostas irregularidades em contratos de energia no Rio de Janeiro; o atraso ou negativa de conexões de geração de energia solar; o crime organizado; o tráfico infantil e a exploração sexual de crianças e adolescentes; o crescimento do uso e do tráfico de drogas no país; e o escândalo dos sites de comercialização de milhas aéreas.
Todas essas investigações tiveram seus requerimentos protocolados antes da CPI do Abuso de Autoridade, mas isso também não deveria ser um problema. Ainda que haja uma prática de priorizar as instalações por ordem de chegada, esta não é uma exigência regimental. E, se há no momento cinco “vagas” para CPIs na Câmara, alguém poderia até discordar da prioridade máxima que damos aos abusos cometidos pelos tribunais superiores, mas não há motivo plausível para relegar o assunto à sexta ou sétima posição em termos de importância para o país: a CPI do Abuso de Autoridade não só poderia como deveria estar entre as cinco primeiras a funcionar em 2024.
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Depende, portanto, apenas da vontade de Arthur Lira colocar em funcionamento a CPI do Abuso de Autoridade. Se forem corretas as informações de bastidores pelas quais o presidente da Câmara não estaria disposto a “bater de frente” com o STF, isso seria duplamente lamentável: primeiro, por atestar a intimidação que o Judiciário vem promovendo sobre o Legislativo, com direito inclusive a operações policiais de fundamento no mínimo duvidoso; segundo, por demonstrar a miopia de um chefe de casa legislativa, incapaz de compreender a gravidade da situação atual, mesmo tendo em suas mãos a chance de ajudar a remediá-la. Afinal, como já explicamos muitas vezes, o objetivo da CPI não é responsabilizar formalmente ministros do STF ou do TSE, até porque essa não é função dos deputados; a CPI quer é recuperar os princípios que norteiam uma compreensão correta da liberdade de expressão e de outras liberdades democráticas, e exibir ao país todo, por meio de uma instância de enorme repercussão, o quão equivocados têm sido os entendimentos adotados pelos ministros nos inquéritos abusivos e em inúmeras outras ocasiões.
A CPI do Abuso de Autoridade é inadiável. Cada dia sem sua instalação é uma omissão que alimenta o agigantamento de tribunais superiores que fazem letra morta da imunidade parlamentar e do direito à ampla defesa; que censuram e calam em nome da “liberdade de expressão”; que investigam, julgam e prendem sem provas em nome da “democracia”; que, enfim, transformam o Estado de Direito em ficção, ainda que mantendo todas as aparências de “instituições que estão funcionando”. E, se a omissão já é suficientemente grave, ainda mais o é a cumplicidade – para Lira, está próximo o momento em que já não será possível diferenciar uma da outra.