Diz o Regimento Interno da Câmara dos Deputados que a casa só pode ter cinco Comissões Parlamentares de Inquérito funcionando ao mesmo tempo. Hoje, existem quatro: do MST, das Lojas Americanas, da manipulação de resultados no futebol e das pirâmides financeiras com criptomoedas – a do 8 de Janeiro, por ser uma comissão mista, que também inclui senadores, não faz parte da conta. E, dos inúmeros assuntos que mobilizam deputados interessados na última vaga aberta para CPIs, nenhum é tão importante quanto os abusos de autoridade cometidos por membros do Poder Judiciário nos últimos tempos. No entanto, apesar de a composição atual da Câmara ser teoricamente mais à direita ou conservadora que a anterior, o deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) está enfrentando mais dificuldades para conseguir as 171 assinaturas necessárias, algo que ele havia obtido rapidamente no ano passado, quando a CPI só não foi aberta por ter sido requerida muito perto do fim das atividades parlamentares de 2022.
Mesmo parlamentares que assinaram o requerimento no ano passado estão relutando em repetir sua atitude neste ano, ou já afirmaram que não o farão. Fábio Schiochet (União-SC) argumentou que a CPI seria “natimorta” e que o Senado seria uma instância mais adequada para esse debate; Vermelho (PL-PR) afirmou que a CPI pode não dar em nada, citando o exemplo da CPMI do 8 de Janeiro; Carlos Chiodini (MDB-SC) foi ainda mais incisivo, falando em “farra de CPIs” e defendendo que há temas mais importantes merecendo a atenção do Congresso, como a reforma tributária. São argumentos que precisam ser desmistificados, seja por revelarem uma compreensão equivocada das prioridades do país, seja por deixarem implícito um certo tom de rendição à difícil realidade que o Brasil vive, seja por demonstrar um certo desconhecimento acerca do real serviço que uma CPI do Abuso de Autoridade poderia prestar ao país.
O que seria mais urgente e importante no Brasil que recuperar o valor da liberdade de expressão e restaurar o império da lei, hoje anulado pelo triunfo da vontade e da conveniência política?
Não se trata, como já dissemos em outras ocasiões, de responsabilizar formalmente ministros do Supremo pela maneira como têm colaborado para a erosão do Estado Democrático de Direito no Brasil – esta, sim, tarefa que cabe exclusivamente ao Senado, que a Constituição designou como contrapeso ao STF. Trata-se, isto sim, de recuperar os princípios que norteiam uma compreensão correta da liberdade de expressão, princípios esses cuja perda permitiu que, a pretexto de “proteger a democracia”, fossem utilizados métodos que violam frontalmente essa liberdade. A caixa de Pandora da censura já se demonstrou dificílima de fechar, apesar da ingenuidade (na melhor das hipóteses) de ministros que julgaram ser possível controlar o monstro, cuja soltura justificaram no passado usando eufemismos como “arco de experimentação regulatória” (na expressão de Edson Fachin) ou “situação excepcionalíssima” (nas palavras de Cármen Lúcia, renegando seu “cala a boca já morreu” de 2015).
O que era “excepcionalíssimo” se tornou corriqueiro a ponto de as decisões que instituem censura prévia, por meio da remoção sumária de perfis em mídias sociais, já nem mencionarem crimes concretos, devidamente tipificados no Código Penal, que pudessem justificar qualquer medida semelhante. Basta, agora, a repetição ad nauseam de frases de efeito em maiúsculas ou negrito e o uso abundante de pontos de exclamação para dar ares de “defesa da democracia” a decisões que, na prática, a solapam – o caso mais recente foi o da censura ao produtor de conteúdo digital Monark, cujo “crime” fora fazer críticas a Alexandre de Moraes e ao Tribunal Superior Eleitoral. Elas demonstram que, mesmo que não tenha havido nenhuma intenção explicitamente autoritária da parte dos ministros do STF, o fato é que há muito perdeu-se a noção real do valor da liberdade de expressão e de quais são os seus limites corretos (pois os há), noção essa soterrada pela confusão conceitual que tudo transforma em “ataque” e “discurso de ódio”, justificando a repressão a atitudes que estão longe de caracterizarem os crimes efetivamente previstos na lei penal brasileira. Como explicou à Gazeta do Povo o professor de Direito Constitucional Alessandro Chiarottino, a noção de liberdade de expressão defendida por Moraes em suas decisões colide frontalmente com o que realmente essa liberdade significa, e os limites que o ministro impõe a essa garantia básica extrapolam completamente os limites que o legislador quis estabelecer.
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Quando é assim, já não se pode falar que persista no Brasil uma das notas características do Estado de Direito, que é o império da lei. E esse fenômeno não se verifica apenas na destruição da liberdade de expressão no país, mas em várias outras decisões judiciais que extrapolam as leis e códigos processuais, como as prisões abusivas do pós-8 de janeiro e o escandaloso caso da cassação de Deltan Dallagnol, em que o Tribunal Superior Eleitoral ignorou o texto da Lei da Ficha Limpa e inventou uma “inelegibilidade por possibilidade”.
Isso nos traz de volta à alegação do deputado Chiodini para não assinar o requerimento da CPI. Ainda que as reformas macroeconômicas sejam essenciais – e ontem mesmo, neste espaço, tratamos da importância da reforma tributária –, o que seria mais urgente e importante no Brasil que recuperar o valor da liberdade de expressão e restaurar o império da lei, hoje anulado pelo triunfo da vontade e da conveniência política? Que instância seria melhor que o coração do poder, o Legislativo federal, para expor ao país inteiro, com riqueza de detalhes, o que realmente significa a garantia constitucional da liberdade de expressão e como seu sentido real foi deturpado e substituído por uma concepção arbitrária? Não seria essa a oportunidade que falta para aquelas parcelas da sociedade e da opinião pública que se omitiram diante dessa desconstrução, ou até mesmo a aplaudiram, finalmente abrirem os olhos para os absurdos que têm sido cometidos “em defesa da democracia”?
A omissão dos parlamentares contribuiu em grande parte para que o Judiciário se hipertrofiasse a ponto de hoje se julgar acima das leis, dos códigos processuais e da Constituição. Deputados avalizaram absurdos cometidos contra seus pares, senadores deixaram de cumprir seu papel constitucional de contrapeso ao Supremo. A CPI do Abuso de Autoridade é uma chance de iniciar um caminho de retorno à normalidade democrática perdida. Nada é mais prioritário que isso.