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Com muita pompa e circunstância, o Congresso Nacional está comemorando os 40 anos da redemocratização do Brasil, contados a partir de 15 de março de 1985, data da posse de José Sarney, que substituía o presidente eleito, Tancredo Neves, internado na véspera e que faleceria pouco mais de um mês depois. Uma sessão solene no Senado, realizada nesta terça-feira, e outra na Câmara, marcada para esta quarta-feira, recordam o fim do regime militar, que, entre outras arbitrariedades, prendeu e censurou. Pois apenas quatro décadas depois, a ascensão de um novo regime que prende e censura de forma arbitrária pede uma resposta contundente, que o novo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), hesita em dar.
Descansam na gaveta de Motta dez requerimentos de criação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), uma herança da gestão de Arthur Lira (PP-AL). Todas elas cumprem o requerimento constitucional do apoio de ao menos um terço dos deputados, mas é preciso que o presidente da Câmara instale a comissão. Não há nenhuma CPI em andamento na casa atualmente, e o Regimento Interno permite que até cinco dessas comissões funcionem simultaneamente. O requerimento que há mais tempo aguarda a decisão do presidente da Câmara é também o mais importante de todos eles: trata-se da CPI do Abuso de Autoridade, cuja abertura foi solicitada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS) em 24 de novembro de 2022. O pedido é tão antigo que já foi arquivado uma vez, devido à mudança de legislatura, mas foi repetido no ano seguinte.
Se quiser mesmo demonstrar compromisso democrático, Hugo Motta precisa superar a hesitação e instalar a CPI do Abuso de Autoridade
O requerimento pede a investigação sobre a “violação de direitos e garantias fundamentais, a prática de condutas arbitrárias sem a observância do devido processo legal, inclusive a adoção de censura e atos de abuso de autoridade, por membros do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal”, concentrando-se em alguns casos específicos, para cumprir outra exigência constitucional sobre a abertura de CPIs: episódios de censura, de bloqueio de contas bancárias e a perseguição a empresários por conversas em um grupo privado de WhatsApp. Não se trata, como já afirmamos inúmeras vezes, de responsabilizar judicialmente ministros do Supremo ou do TSE, até porque os deputados nem podem fazê-lo; o objetivo é usar esses casos emblemáticos para lançar toda a luz possível sobre todos os desmandos e arbitrariedades cometidos pelos tribunais superiores nos últimos anos, e sua atuação direta contra liberdades e garantias democráticas.
A recuperação da correta compreensão da natureza e do alcance da liberdade de expressão, para enfim superarmos o apagão que vigora há tantos anos, é uma prioridade nacional, e a CPI do Abuso de Autoridade é a “prioridade dentro da prioridade”: é o que de mais importante os deputados poderiam fazer no momento para recuperar, ao menos parcialmente, a normalidade democrática no Brasil. Não pode haver dúvida alguma a esse respeito, e nos últimos meses o país ganhou ainda mais motivos para comprovar o caráter inadiável desta CPI, do bloqueio do X até as revelações sobre a atuação “fora do rito” pela qual o TSE, presidido por Alexandre de Moraes, abastecia os inquéritos abusivos conduzidos pelo mesmo ministro no Supremo.
Se Motta estivesse relutante em instalar a CPI por não compreender a sua relevância no momento atual do país, já estaríamos diante de um caso extremo de cegueira inaceitável no ocupante de um dos cargos mais relevantes da República. No entanto, parlamentares ouvidos pela Gazeta do Povo apontam para um cenário ainda pior: Motta não estaria disposto a criar atritos com o Judiciário. Se de fato for esse o caso, este seria o atestado definitivo do tipo de superpoder em que o STF se transformou, capaz de intimidar assim um dos chefes do Legislativo – ironicamente, mais um motivo que justificaria a necessidade da CPI que Motta hesita em deixar funcionar.
Nesta quarta-feira, a Câmara será palco de muitas loas à democracia, no marco dos 40 anos da posse de um civil no Palácio do Planalto. De fato, a democracia merece ser enaltecida, mas ela não depende apenas de o mandatário de turno usar terno em vez de farda, ou de ser legitimado pelo voto popular em vez da ponta da baioneta. A democracia depende do império da lei, do respeito às garantias e liberdades individuais, do funcionamento dos freios e contrapesos, e tudo isso está em falta no país. Se quiser mesmo demonstrar compromisso democrático, Motta precisa superar a hesitação e instalar a CPI do Abuso de Autoridade; ela fará mais pela democracia brasileira que todos os discursos deste dia 19.